O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Reportagens de Além-túmulo — Humberto de Campos


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O drama de André

1 Falava-se, entre nós, dos problemas da educação com liberdade irrestrita, quando um dedicado servo do Evangelho observou com justiça:

— Crianças sem disciplina e jovens sem orientação sadia constituem o gérmen dos imensos desastres humanos. A Civilização e o Estado podem apresentar os seus prejuízos, visto serem organizações perfectíveis nas mãos de homens imperfeitos; contudo, sem a sua influência, reverteriam à animalidade anterior. Assim ocorre, quanto ao lar e à educação doméstica. A família tem o seu quadro de lutas ásperas; entretanto, se lhe retirarmos o aparelhamento, tudo voltará às tribos sanguinárias dos tempos primitivos.

— Todavia, há quem coloque esse problema em plano secundário, — retrucou um amigo, — a educação com os instintos emancipados tem os seus adeptos fervorosos, mesmo nos círculos do Espiritismo…

2 — Menos na esfera do Espiritismo cristão atalhou o mentor respeitável; — nas atividades meramente fenomênicas, sem qualquer propósito religioso, encontram-se companheiros obcecados por essa ilusão. Empolgados pela luz e pela liberalidade da doutrina consoladora, sem aderirem aos sentimentos de Jesus, costumam andar embriagados nos enganos brilhantes. Não percebem os perigos amargos que lhes sitiam a vida. Desinteressam-se da educação dos filhos mais tenros, com grave dano para o futuro do grupo familiar. No entanto, bastariam ligeiras considerações para o reconhecimento do erro clamoroso. 3 Por que confiaria Deus determinados filhos a essas ou àquelas organizações paternas, se não fosse necessária semelhante cooperação no mecanismo da iluminação ou do resgate? O Eterno proporciona o doce licor do esquecimento às almas culpadas ou oprimidas, e mandou que se criassem os períodos da infância e da juventude, na Terra, a fim de que os senhores do Lar se valham do ensejo para a divina semeadura da bondade e do amor, visando ao trabalho da consciência retilínea do porvir. Para que serviriam, de outro modo, os pais humanos, se abdicassem da posição de sentinelas, entregando os filhos às tendências inferiores de ontem? Não seria condenar o instituto doméstico a um reduto de prazer vicioso?!

4 Tais interrogações ficavam no ar. Ninguém se atrevia a intervir no assunto, quando o nosso amigo tecia comentários tão fascinantes. Observando as nossas disposições mais íntimas, o generoso instrutor continuou:

— Aludindo à cegueira de alguns dos nossos irmãos do mundo, tenho um caso doloroso em minhas relações pessoais.

5 A pequena assembleia colocou-se à escuta, evidenciando justificado interesse.

— No fim do século passado, — prosseguiu o devotado servo do Cristo, — quando os ideais espiritistas se alastravam no país, em modesto vilarejo do norte, um negociante honesto foi dos primeiros a demonstrar simpatia pelos princípios novos. André fora rubro seguidor do Positivismo, e, ainda sob a sua influenciação, penetrou os umbrais da Doutrina, intoxicado por fortes ilusões no terreno da Filosofia transcendente. 6 Bom discutidor, comentava sempre a vasta situação do mundo, tecendo referências encomiásticas à virtude, à fraternidade e à liberdade. Sua inteligência não era um diamante lapidado nos bancos acadêmicos; entretanto, apresentava, em suas características, a espontaneidade e a sutileza que assinalam o caboclo brasileiro. Não era rico, mas sua casa era farta e feliz. As remunerações eventuais do comércio ofereciam-lhe vantagens suficientes. Dois pequeninos enriqueciam-lhe o lar; no entanto, por mais que a esposa insistisse, a fim de que tivessem as necessidades espirituais atendidas, quanto ao problema religioso, André zombava, murmurando:

7 — Nada disso! — Meus filhos hão de crescer sem tais prejuízos. — Quero vê-los distante dos preconceitos dogmáticos de todos os tempos. Problemas religiosos cheiram a catecismo. Acaso ignoras que esses enganos já foram relegados aos clérigos caducos?

8 — Sim, — explicava a companheira sem irritação, — compreendo teus escrúpulos, no sentido de preservar os meninos da exploração e do abuso do nome de Deus; todavia, não podemos eliminar as necessidades justas da alma. Já que não permitiremos a influência dos padres junto dos nossos filhinhos, precisamos criar um ambiente de ensino doméstico, onde aprendam conosco a cultivar o respeito e a obediência ao Altíssimo.

9 André exibia um risinho vaidoso e asseverava:

— Esquece as velharias, mulher! A razão resolverá isso. A mentalidade de agora reclama independência. Nossos filhos não serão escravos das disciplinas impiedosas que nos torturaram a infância.

10 — Mas, — voltava a esposa, sensatamente, — se Deus nos transformou em pais, neste mundo, é para que sejamos orientadores dedicados de nossos filhos. Quando não vigiamos, André, a liberdade pode transformar-se em libertinagem.

11 O marido parecia impressionar-se, momentaneamente, com as respostas; contudo, dava de ombros, sem maior consideração. E o tempo foi passando. Na obediência ao regime paterno, os rapazelhos cresceram voluntariosos e rudes. Somente abandonaram o curso primário após os quinze anos, em razão da ociosidade e indisciplina. Empenhavam-se, comumente, em atritos ásperos, dos quais apenas se afastavam, em sangue, depois de longas súplicas maternais. Odiavam os livros sérios, mas estavam sempre atentos às anedotas deprimentes.

12 Por essa época o genitor começou a entender as dificuldades da situação, lamentando a leviandade de outros tempos, quando descurara a educação religiosa e moral dos filhos que Deus lhe havia confiado. Era, porém, muito tarde. Léo e Oscar, os dois rapazes, guardavam uma observação revoltante para cada conselho paternal. O nosso amigo tentou a internação dos jovens rebeldes em estabelecimento disciplinar, mas foi em vão. Procurou localizá-los em serviço honesto; entretanto, ambos eram admitidos para serem dispensados quase imediatamente. Ninguém lhes tolerava os costumes e as palavras torpes.

13 Certa vez, quando o comerciante chegava ao lar, em noite sombria, percebeu acalorada discussão no interior doméstico. Mais alguns passos e defrontou a cena humilhante. Em atitude ingrata, os filhos espancavam a própria mãe. Na sua indignação, André buscou expulsá-los, mas a esposa interveio com a ternura de sempre.

14 Decorridos alguns meses, ambos os rapazes foram apanhados em flagrante de furto. Após a prisão vexatória, o progenitor não conseguiu sofrear a revolta que lhe atormentava o coração e, não obstante as rogativas reiteradas da companheira, baniu os filhos do ninho familiar.

15 Alma esfacelada por desilusões tão amargas, providenciou a mudança de um Estado para outro. Vendeu a pequena propriedade comercial, as terras, os rebanhos e partiu. Entretanto, os cônjuges, apesar da união afetiva, em afinidades profundas, embora a modificação da paisagem, nunca mais se avistaram com a tranquilidade primitiva. Ensaiavam o regresso à ventura de outros tempos, mas debalde. A lembrança dos filhos ingratos apresentava-se com as imposições da velhice, multiplicando, porém, as preocupações e as saudades.

16 Numa noite tempestuosa, André despertou às primeiras horas da madrugada, ouvindo forte ruído no corredor. Tomando da arma de fogo, levantou-se cautelosamente. Encaminhou-se ao cofre de madeira localizado em aposento contíguo, notando-o arrombado. Era um ladrão o visitante imprevisto. Como sombra no seio das sombras, André acompanha os passos do malfeitor e, antes que pudesse escapar, prostra-o com um tiro, quase à queima-roupa. Ergueu-se a esposa, assustada. Acendem a luz. E quando o comerciante, muito trêmulo, aproxima a lanterna do rosto da vítima que se esvaía em sangue, cruzam ambos o olhar.

— Meu pai!.. meu pai!… — Grita, em tom rouco, o malfeitor moribundo.

— Meu filho!… — Exclamam, a um só tempo, marido e mulher, entre lágrimas de desesperação.

17 Era Oscar que, ignorando o novo sítio da habitação paterna, atacara a residência, nos seus velhos hábitos de pilhagem.

18 O narrador fez uma pausa mais longa, reconhecendo o efeito de suas palavras no ânimo geral e continuou: — É fácil imaginar a tragédia que se seguiu. O casal não teve coragem de revelar à Polícia a verdadeira condição da vítima, entregando-se André à ação judicial, quase imbecilizado na sua dor. Sua causa, porém, era simpática. A energia de que dera testemunho livrara o vilarejo de um bandido comum. Enquanto o povo o aplaudia, o negociante chorava, angustiado. E, antes de regressar do cárcere, aconteceu o que seria de esperar. A pobre mãe, ralada pelo infortúnio extremo, entregou a alma a Deus, assistida pelas dedicações da vizinhança.

19 O nosso amigo estava, agora, sem ninguém.

Quanto maiores eram as esperanças de liberdade em futuro próximo, mais lastimava a própria dor. Por fim saiu da cadeia pública, ovacionado pela simpatia popular como herói.

20 André, no entanto, permanecia inerte, derrotado. Vendeu quanto possuía, a fim de pagar as custas da Justiça que o absolvera e tornou a partir, sem destino.

21 Velho, cansado, sozinho, não se sentiu bastante forte para recomeçar a luta. Noites ao relento, dias de fome, roupa em frangalhos e lá se ia, de aldeia em aldeia, vivendo da caridade comum. Parecia idiota, incapaz de qualquer reação. O tempo n incumbiu-se de completar-lhe a feição de mendigo. Larga bolsa de couro à cintura, rosto hirsuto, grosseiro cajado para os caminhos ásperos, prosseguia, sem pousada certa, recorrendo à generosidade popular.

22 Os anos rolavam para o seu coração, em amargoso silêncio, quando, num crepúsculo de borrasca forte, o mísero velhinho aproxima-se de um rio transbordante. O desventurado necessitava ganhar a outra margem, tentando o abrigo na localidade mais próxima. Um homem corpulento, de traços rudes, convida-o com um gesto mudo a tomar a canoa frágil. O pedinte aceita. O barqueiro desconhecido não cessa de fixar a bolsa, onde André recolhe os vinténs da piedade pública. Enquanto isso, o desventurado ancião pousa os olhos nevoados pela velhice no seu benfeitor, que remava em silêncio. A ternura paterna volve a pintar-se no semblante sulcado de rugas. Se Léo ainda existisse, devia parecer-se com aquele homem. Olvidando todas as preocupações para recordar o filho, o desventurado não percebe os movimentos sutis do barqueiro anônimo.

23 Distante da margem, o remador lança um último olhar aos matagais vizinhos, amortalhados na sombra do crepúsculo e, sentindo-se sem testemunhas, avança para o mendigo miserável, arrebata-lhe a bolsa, e atira-lhe o corpo na corrente tranquila, murmurando com ironia:

— As águas não falam!… Vamos, velho imundo, uma bolsa não te pode salvar a vida!

24 André compreendeu, afinal: aquela voz era do filho desaparecido. Não hesitou. O sentimento de paternidade não o havia enganado.

— Léo!… Léo! Meu filho!… — Gritou angustiado.

25 Entretanto, era tarde. Ambos trocaram o supremo olhar, com estranha sensação de sofrimento e pavor, mergulhando o velhinho para sempre.

26 Como veem, — concluiu o narrador emocionado, — André foi indiferente à educação moral dos filhos, esquecendo-se de efetuar a semeadura da infância, a fim de construir-lhes o caráter na juventude. A experiência resultou-lhe em frutos bem amargos. Depois de eliminar, involuntariamente, um deles, acabou assassinado pelo outro.

27 Compreenderam, agora, o que significa educação com liberdade irrestrita?

A reduzida assembleia permanecia sob penosa comoção e ninguém ousou responder.


Humberto de Campos

(Irmão X)



[1] No original: “O povo incumbiu-se de completar-lhe a feição de mendigo.”


Texto extraído da 1ª edição desse livro.

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