O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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O Evangelho por Emmanuel — Volume V — 2ª Parte ©

Textos paralelos de Atos dos apóstolos e Paulo e Estêvão

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A morte de Estêvão

55 [Ele], porém, estando cheio do Espírito Santo, fitando o Céu, viu a glória de Deus, e Jesus em pé à direita de Deus. 56 E disse: eis que contemplo os Céus abertos e o filho do homem, em pé, à direita de Deus. 57 Gritando com grande voz, apertaram os seus ouvidos e arremeteram-se, unânimes; contra ele. 58 Lançando-o para fora da cidade, o apedrejaram. As testemunhas depuseram as suas vestes junto aos pés de um jovem, chamado Saulo. 59 E apedrejaram a Estêvão, que invocava dizendo: Senhor Jesus, recebe o meu espírito. 60 Pondo-se de joelhos, gritou com grande voz: Senhor, não lhes imputes este pecado. E, tendo dito isto, adormeceu. Saulo estava concordando com a eliminação dele. (Atos 7:55-60) 1 Naquele dia, houve uma grande perseguição contra a Igreja de Jerusalém; e todos foram dispersos pelas regiões da Judeia e Samaria, exceto os Apóstolos. 2 Varões piedosos sepultaram Estêvão e fizeram grande lamentação por ele. — (Atos 8:1,2)


11 Nesse dia, desde muito cedo, o mais alto Tribunal de Israel apresentava desusado movimento. A execução do pregador do “Caminho” constituía objeto de largos comentários. Sobretudo os fariseus faziam questão de todos os informes. Ninguém queria perder o angustioso espetáculo. A igreja modesta de Simão Pedro, entretanto, não ousou aproximar-se para qualquer indagação. Saulo, como perseguidor declarado e usando das prerrogativas da investidura legal, mandara anunciar que nenhum adepto do “Caminho” poderia assistir à execução a efetivar-se num dos grandes pátios do santuário. Longas filas de soldados foram dispostas na grande praça, para dispersar quaisquer grupos de mendigos que se formassem com intuitos desconhecidos e, desde as primeiras horas da manhã, numerosos pedintes de Jerusalém eram corridos das imediações a golpes de chanfalho.

Depois do meio-dia, autoridades e curiosos reuniam-se, ávidos de sensação, no recinto do Sinédrio, em abafado vozerio. Aguardava-se o sentenciado, que chegou, finalmente, cercado de escolta armada, como se fora um malfeitor comum.


12 Estêvão apresentava-se bastante desfigurado, embora o semblante não traísse a peculiar serenidade. O passo tardio, o cansaço extremo, as equimoses das mãos e dos pés, patenteavam os pesados tormentos físicos que lhe eram infligidos à sombra do calabouço. A barba crescida alterava-lhe o aspecto fisionômico, todavia, os olhos tinham a mesma fulgurância de cristalina bondade.

Em meio da curiosidade geral, Saulo de Tarso o encarou satisfeito. Estêvão pagaria, afinal, as incompreensões e os insultos.

No instante aprazado, o doutor inflexível fez a leitura do libelo. Antes, porém, de pronunciar a sentença última, fiel ao que prometera, mandou que os soldados empurrassem o condenado até à sua tribuna. Enfrentando o pregador do Evangelho, sem qualquer expressão de piedade, interrogou com aspereza:

— Estarias disposto, agora, a jurar contra o carpinteiro Nazareno? Lembra-te que é a última oportunidade de conservares a vida.


13 Tais palavras, pronunciadas mecanicamente, soaram de modo estranho aos ouvidos do moço de Corinto, que as recebeu, na alma sensível e generosa, como novos dardos de ironia.

— Não insulteis o Salvador! — disse o arauto do Cristo, com desassombro. — Nada no mundo me fará renunciar à sua tutela divina! Morrer por Jesus significa uma glória, quando sabemos que ele se imolou na cruz pela Humanidade inteira!

Mas, uma torrente de impropérios cortava-lhe a palavra.

— Basta! Apedrejemo-lo quanto antes! Morte ao imundo! Abaixo o feiticeiro! Blasfemo!… Caluniador!

A gritaria tomava proporções assustadoras. Alguns fariseus mais irritados, burlando os guardas, aproximaram-se de Estêvão tentando arrastá-lo sem compaixão. Entretanto, ao primeiro puxão na gola rota, um pedaço da túnica rafada ficava-lhes nas mãos. Foi necessário a intervenção da força armada para que o moço de Corinto não fosse estraçalhado, ali mesmo, pela multidão furiosa e delirante. Saulo, em altas vozes, ordenou a intervenção dos soldados. Queria a execução do discípulo do Evangelho, mas, com todo o cerimonial previsto.


14 Estêvão tinha agora o rosto enrubescido, envergonhado. Seminu, foi auxiliado por um legionário romano a recompor os sobejos da veste em frangalhos, acima dos rins, para não ficar inteiramente nu. Com a mão trêmula, pelos maus tratos recebidos, procurava limpar a saliva que os mais exaltados lhe haviam esputado em pleno rosto. Forte pancada no ombro causava-lhe intensa dor no braço todo. Compreendeu que lhe chegavam os últimos instantes de vida. A humilhação doía-lhe fundo. Mas recordou as descrições de Simão a respeito de Jesus, no derradeiro transe. Em frente de Herodes Ântipas,  †  o Cristo sofrera dos israelitas idênticas ironias. Fora açoitado, ridicularizado, ferido. Quase nu, suportara todos os agravos sem uma queixa, sem uma expressão menos digna. Ele que amara os infelizes, que trabalhara por fundar uma doutrina de concórdia e de amor para todos os homens, que abençoara os mais desgraçados e os acolhera com carinho, recebera o galardão da cruz em suplícios imensuráveis. E Estêvão pensou: — “Quem sou eu e quem era o Cristo?” Essa íntima interrogação propiciava-lhe certo consolo. O Príncipe da Paz fora arrastado pelas ruas de Jerusalém, sob o escárnio das maiores injúrias, e era o Messias esperado, o Ungido de Deus! Por que, sendo ele homem falível, portador de numerosas fraquezas, haveria de hesitar no momento do testemunho? 15 E, com o pranto a escorrer-lhe no rosto lacerado, escutava a voz cariciosa do Mestre no coração: “Todo aquele que desejar participar do meu reino, negue-se a si mesmo, tome sua cruz e siga os meus passos”.( † ) Era preciso negar-se para aceitar o sacrifício proveitoso. Ao fim de todos os martírios, deveria encontrar o amor glorioso de Jesus, com a beleza da sua ternura imortal. O pregador humilhado e ferido recordou o passado de trabalhos e esperanças. Parecia-lhe rever a infância saudosa, na qual o zelo materno lhe incutira os fundamentos da fé confortadora; depois, as nobres aspirações da mocidade, a dedicação paterna, o amor da irmãzinha que as circunstâncias do destino lhe haviam arrebatado. Ao pensar em Abigail, experimentou certa angústia no coração. Agora, que deveria enfrentar a morte, desejava revê-la para as últimas recomendações. Relembrou a derradeira noite em que haviam permutado tantas impressões de ternura, tantas promessas fraternais, na lôbrega prisão de Corinto. Apesar dos movimentos renovadores da fé, de cujos trabalhos compartilhava ativamente em Jerusalém, jamais pudera esquecer o dever de procurá-la fosse onde fosse. Enquanto em derredor se multiplicavam impropérios no turbilhão de gritos e ameaças revoltantes, o sentenciado chorava com as suas recordações. Socorrendo-se das promessas do Cristo no Evangelho, experimentava brando alívio. A ideia de que a irmãzinha ficaria no mundo, entregue a Jesus, suavizava-lhe as angústias do coração.


16 Mal não saíra de suas dolorosas reminiscências, ouviu a voz imperiosa de Saulo dirigindo-se aos guardas:

— Algemai-o novamente, tudo está consumado, sigamos para o átrio.

O discípulo de Simão Pedro, estendendo os pulsos para receber as algemas, sofreu pancadas tão fortes de um soldado inescrupuloso, que dos pulsos feridos começou a jorrar muito sangue.

Estêvão, porém, não fez o menor gesto de resistência. De quando em quando, levantava os olhos como se implorasse os recursos do Céu para os seus minutos supremos. Não obstante os apupos e as chagas que o dilaceravam, experimentava uma paz espiritual desconhecida. Todos aqueles sofrimentos do cerimonial eram pelo Cristo. Aquela hora era a sua oportunidade divina.

O Mestre de Nazaré havia convocado o seu coração fiel ao público testemunho dos valores espirituais da sua gloriosa doutrina. Confiante, raciocinava: — “Se o Messias aceitara a morte infamante do Calvário para salvar todos os homens, não seria uma honra dar a vida por Ele?” Seu coração, sempre ávido de dar testemunho ao Senhor, desde que lhe conhecera o Evangelho de redenção, não deveria rejubilar-se com o ensejo de oferecer-lhe a própria vida? Entretanto, a ordem de caminhar arrancou-o dos mais elevados pensamentos.

O generoso pregador do “Caminho” hesitava nos passos combaleantes, mas tinha sereno e firme o olhar, revelando desassombro nos derradeiros lances do testemunho.


17 Naquelas primeiras horas da tarde, o sol de Jerusalém era um braseiro ardente. Não obstante o calor insuportável, a massa deslocou-se com profundo interesse. Tratava-se do primeiro processo concernente às atividades do “Caminho”, após a morte do seu fundador. Destacando-se de todas as correntes judaicas ali presentes, em penhor de prestígio à Lei de Moisés, os fariseus faziam grande alarde do feito. Ladeando o condenado faziam questão de atirar-lhe em rosto as mais pesadas injúrias.

Ele, porém, embora evidenciasse profunda tristeza, caminhava seminu, sereno, imperturbável.

A sala de reuniões do Sinédrio não distava muito do átrio do Templo, onde se realizaria a macabra cerimônia. Apenas alguns metros e a caminhada terminava, justamente no local onde se erguia o enorme altar dos holocaustos.

Tudo estava preparado a caráter, como Saulo deixara perceber em seus propósitos.

Ao fundo do pátio espaçoso, Estêvão foi atado a um tronco, para que o apedrejamento se efetuasse na hora precisa.

Os executores seriam os representantes das diversas sinagogas da cidade, de vez que era função honrosa atribuída a quantos estivessem em condições de operar na defesa de Moisés e de seus princípios. Cada sinagoga indicara o seu delegado e, ao iniciar a cerimônia, como chefe do movimento, Saulo recebia um por um, junto da vítima, guardando nas mãos, de acordo com a pragmática, os mantos brilhantes, enfeitados de púrpura.


18 Mais uma ordem do moço tarsense e a execução começou entre gargalhadas. Cada verdugo mirava friamente o ponto preferido, esforçando-se para tirar maior partido.

Risos gerais seguiam-se a cada golpe.

Poupemos-lhe a cabeça — dizia um dos mais exaltados —, a fim de que o espetáculo não perca a intensidade e o interesse.

Cada expressão do Judaísmo acompanhava o verdugo indicado pelos maiorais da sinagoga, com atenção e entusiasmo, aos berros de “Morra o traidor! o feiticeiro!…”

— Fere no coração, em nome dos cilícios! — exclamava alguém, do meio da turba.

— Separa-lhe a perna pelos idumeus! — secundava outra voz impudente.


19 Mais ou menos afastado da turba, seguindo de perto os movimentos do condenado, Saulo de Tarso apreciava a vibração popular, satisfeito e confortado. De qualquer maneira, a morte do pregador do Cristo representava o seu primeiro grande triunfo na conquista das atenções de Jerusalém e de suas prestigiosas corporações políticas. Naquela hora em que focalizava tantas aclamações do povo de sua raça, orgulhava-se com a decisão que o levara a perseguir o “Caminho”, sem consideração e sem tréguas. Aquela tranquilidade de Estêvão, no entanto, não deixava de o impressionar bem no imo do coração voluntarioso e inflexível. Onde poderia ele haurir tal serenidade? Sob as pedras que o alvejavam! aqueles olhos encaravam os algozes sem pestanejar, sem revelar temor nem turbação!


20 De fato, amarrado de joelhos ao tronco do suplício, o moço de Corinto guardava impressionante característica de paz nos olhos translúcidos, de onde as lágrimas silenciosas corriam abundantes. O peito descoberto era uma chaga sangrenta. As vestes esfrangalhadas colavam-se ao corpo, empastado de suor e sangue.

O mártir do “Caminho” sentia-se amparado por forças poderosas e intangíveis. A cada novo golpe, sentia recrudescer os padecimentos infinitos que lhe azorragavam o corpo macerado, mas, no íntimo, guardava a impressão de uma lenidade sublime. O coração batia descompassadamente. O tórax estava coberto de feridas profundas, as costelas fraturadas.

Nessa hora suprema, recordava os mínimos laços de fé que o prendiam a uma vida mais alta. Lembrou todas as orações prediletas da infância. Fazia o possível por fixar na retina o quadro da morte do pai supliciado e incompreendido. Intimamente, repetia o Salmo XXIII de David, qual o fazia junto da irmã, nas situações que pareciam insuperáveis. “O Senhor é meu pastor. Nada me faltará…” ( † ) As expressões dos Escritos Sagrados, como as promessas do Cristo no Evangelho, estavam-lhe no âmago do coração. O corpo quebrantava-se no tormento, mas o espírito estava tranquilo e esperançoso.


21 Agora, tinha a impressão de que duas mãos cariciosas passavam de leve sobre as chagas doloridas, proporcionando-lhe branda sensação de alívio. Sem qualquer receio, percebeu que lhe havia chegado o suor da agonia.

Dedicados amigos, do Plano espiritual, rodeavam o mártir nos seus minutos supremos. No auge das dores físicas, como se houvesse transposto infinitos abismos de percepção, o moço de Corinto notou que alguma coisa se lhe havia rasgado na alma ansiosa. Seus olhos pareciam mergulhar em quadros gloriosos de outra vida. A legião de emissários de Jesus, que o cercava carinhosamente, figurou-se-lhe a corte celestial. No caminho de luz desdobrado à sua frente, reconheceu que alguém se aproximava abrindo-lhe os braços generosos. Pelas descrições que ouvira de Pedro, percebeu que contemplava o próprio Mestre em toda a resplendência de suas glórias divinas. Saulo observou que os olhos do condenado estavam estáticos e fulgurantes. Foi quando o herói cristão, movendo os lábios, exclamou em alta voz:

— Eis que vejo os céus abertos e o Cristo ressuscitado na grandeza de Deus!…


22 Viram, então, que duas mulheres jovens aproximavam-se do perseguidor com gestos íntimos. Dalila entregou Abigail ao irmão, despedindo-se logo para atender ao chamado de outra amiga. A noiva terna cingia uma túnica à moda grega, que mais lhe realçava o formoso rosto. Fosse pela dolorosa cena em curso, ou pela presença da mulher amada, percebia-se que Saulo estava um tanto perplexo e sensibilizado. Dir-se-ia que a coragem indomável de Estêvão o levara a considerar a tranquilidade desconhecida que deveria reinar no espírito do mártir.

Em face da gritaria que a rodeava e notando a miserável situação da vítima, a jovem mal pôde conter um grito de espanto. Que homem era aquele, atado ao tronco do suplício? Aquele peito arfante, empastado de sangue, aqueles cabelos, aquele rosto pálido que a barba crescida desfigurava, não seriam de seu irmão? Ah! como falar das ansiedades imensas na surpresa imprevista de um minuto? Abigail tremia. Seus olhos aflitos acompanhavam os menores movimentos do herói, que parecia indiferente, no êxtase que o absorvia. Embalde Saulo chamava-lhe a atenção, discretamente, de modo a poupá-la de penosas impressões. A moça parecia nada ver além do sentenciado a esvair-se no sangue do martírio. Lembrava-se agora… Em se afastando do calabouço, depois da morte do pai, foi assim mesmo que deixara Jeziel na posição do suplício. O tronco execrável, as algemas impiedosas e o pobrezinho de joelhos! Tinha ímpetos de atirar-se à frente dos algozes, esclarecer a situação, saber a identidade daquele homem.


23 Nesse instante, ignorando-se alvo de tão singular atenção, o pregador do “Caminho” saiu de sua impressionante imobilidade. Vendo que Jesus contemplava, melancolicamente, a figura do doutor de Tarso, como a lamentar seus condenáveis desvios, o discípulo de Simão experimentou pelo verdugo sincera amizade no coração.

Ele conhecia o Cristo e Saulo não. Assomado de fraternidade real e querendo defender o perseguidor, exclamou de modo impressionante:

— Senhor, não lhe imputes este pecado!…

Isso dito, voltou os olhos para fixá-los no verdugo, amorosamente. Eis, porém, que divisou junto dele a figura da irmã, trajada como nos dias de júbilo, na casa paterna. Era ela, a irmãzinha amada, por cujo afeto tantas vezes lhe palpitara o coração, de saudade e de esperança. Como explicar sua presença? Quem sabe havia sido também levada ao reino do Mestre e regressava com ele, em espírito, para trazer-lhe as boas-vindas de um mundo melhor? Quis bradar sua alegria infinita, atraí-la, ouvir-lhe a voz nos cânticos de David, morrer embalado pelo seu carinho; mas a garganta já não timbrava. A emoção dominara-o na hora extrema. Sentiu que o Mestre de Nazaré acariciava-lhe a fronte, onde a última pedrada abrira uma flor de sangue. Ouvia, muito longe, vozes argentinas que cantavam hinos de amor sobre os gloriosos motivos do Sermão da Montanha. Incapaz de resistir por mais tempo ao suplício, o discípulo do Evangelho sentia-se desfalecer.


24 Escutando as expressões do condenado e recebendo-lhe o olhar fulgurante e límpido, Abigail não pôde dissimular a angustiosa surpresa.

— Saulo! Saulo!… é meu irmão — exclamou aterrada.

— Que dizes? — gaguejou baixinho o doutor de Tarso arregalando os olhos — Não pode ser! Enlouqueceste?

— Não, não, é ele; é ele! — repetia tomada de extrema palidez.

— É Jeziel — insistia Abigail assombrada —, querido; concede-me um minuto, deixa-me falar ao moribundo apenas um minuto.

— Impossível! — replicou o moço, contrafeito.

— Saulo, pela Lei de Moisés, pelo amor de nossos pais, atende — exclamava torcendo as mãos.

O ex-discípulo de Gamaliel não acreditava na possibilidade de semelhante coincidência. Além do mais, havia a diferença do nome. Convinha esclarecer esse ponto, antes de tudo. Certo, a falsa impressão de Abigail se desfaria ao primeiro contato direto com o agonizante. Sua índole, sensível e afetuosa, justificava o que a seu ver era um absurdo. Conjugando essas reflexões de um segundo, falou à noiva, com austeridade:

— Irei contigo identificar o moribundo, mas até que o possamos fazer, cala as tuas impressões… Nem uma palavra, ouviste? É necessário não esquecer a respeitabilidade do local em que te encontras!


25 Logo após, chamava um funcionário de alta categoria, secamente:

— Manda levar o cadáver para o gabinete dos sacerdotes.

— Senhor — respondeu o outro respeitoso —, o condenado ainda não está morto.

— Não importa, vai assim mesmo, pois arrancar-lhe-ei a confissão do arrependimento na hora extrema.

A determinação foi cumprida sem mais demora, enquanto Saulo mandava servir, de modo geral, aos amigos e admiradores, várias ânforas de vinho delicioso, por comemorarem o seu primeiro triunfo. Depois, cenho carregado, apreensivo, esgueirou-se quase sorrateiramente até à sala reservada aos sacerdotes de Jerusalém, em companhia da noiva.

Atravessando os grupos que o saudavam com frenéticas aclamações, o moço tarsense parecia alheado de si mesmo. Conduzia Abigail pelo braço, delicadamente, mas não lhe dirigia palavra. A surpresa emudecera-o. E se Estêvão fosse, de fato, aquele Jeziel que aguardavam com tamanha ansiedade? Absorvidos em angustiosas reflexões, penetraram na câmara solitária. O jovem doutor ordenou a retirada dos auxiliares, fechou cuidadosamente a porta.


26 Abigail aproximou-se do irmão ensanguentado, com infinita ternura. E, como se sentisse chamado à vida por uma força poderosa e invencível, ambos notaram que a vítima movia a cabeça sangrenta. Evidenciando o penoso esforço da derradeira agonia, Estêvão murmurou:

— Abigail!…

Aquela voz era quase um sopro, mas o olhar estava calmo, límpido. Ouvindo-lhe a expressão vacilante e arrastada, o jovem tarsense recuou tocado de espanto. Que significava tudo aquilo? Não poderia duvidar. A vítima de sua perseguição implacável era o irmão bem-amado da mulher escolhida. Que mecanismo do destino engendrara semelhante situação, que lhe havia de amargurar toda a vida? Onde estava Deus, que não o inspirara no dédalo de circunstâncias que o levaram até àquele irremediável, cruel desfecho? Sentiu-se possuído de um pesar sem limites. Ele, que elegera Abigail o anjo tutelar da existência, seria obrigado a renunciar a esse amor para sempre. O orgulho de homem não lhe permitiria desposar a irmã do suposto inimigo, confessado e julgado reles criminoso. Aturdido, deixou-se ali ficar, como se força incoercível o chumbasse ao solo, transformando-o em objeto de insuportáveis ironias.

— Jeziel! — exclamou Abigail osculando e regando de lágrimas a fronte do moribundo — como te vejo eu!… Parece que o suplício te durou desde o dia em que nos separamos!… E soluçava…

— Estou bem… — disse o discípulo de Jesus, fazendo o possível por mover a destra quebrada e deixando perceber o desejo de acariciar-lhe os cabelos, como nos dias da meninice e da primeira juventude. — Não chores!… Eu estou com o Cristo!…

— Quem é o Cristo? — murmurou a jovem — Por que te chamam Estêvão? Como te modificaram assim?

— Jesus… é o nosso Salvador… — explicava o agonizante, no propósito de não perder os minutos que se escoavam céleres. — E, agora, chamam-me Estêvão… porque um romano generoso me libertou… mas pediu… absoluto segredo. Perdoa-me… Foi por gratidão que obedeci ao conselho. Ninguém será reconhecido a Deus se não mostrar agradecimento aos homens…


27 Vendo que a irmã prosseguia em soluços, continuou:

— Sei que vou morrer… mas a alma é imortal… Sinto deixar-te… quando mal torno a ver-te, mas hei de ajudar-te do lugar em que estiver.

— Ouve, Jeziel — exclamou a irmã num desabafo —, que te ensinou esse Jesus para te levar a um fim tão doloroso? Quem assim abandona um servo leal, não será antes um senhor cruel?

O moribundo pareceu admoestá-la com o olhar.

— Não penses, dessa maneira — prosseguiu com dificuldade. — Jesus é justo e misericordioso… prometeu estar conosco até à consumação dos séculos… mais tarde compreenderás; a mim, ensinou-me amar os próprios verdugos…


28 Ela abraçava-o, carinhosa, desfeita em lágrimas abundantes. Depois de uma pausa em que a vítima se revelava nos derradeiros instantes da vida material, viu-se que Estêvão se agitava em esforços supremos.

— Com quem te deixarei?

— Este é meu noivo — esclareceu a jovem apontando o moço de Tarso, que parecia petrificado.

O moribundo contemplou-o sem ódio e acentuou:

— Cristo os abençoe… Não tenho no teu noivo um inimigo, tenho um irmão… Saulo deve ser bom e generoso; defendeu Moisés até ao fim… Quando conhecer a Jesus, servi-lo-á com o mesmo fervor… Sê para ele a companheira amorosa e fiel…

Mas a voz do pregador do “Caminho” estava agora rouca e quase imperceptível. Nas vascas da morte, contemplava Abigail fraternalmente enternecido.


29 Ouvindo-lhe as últimas frases, o doutor de Tarso fizera-se lívido. Queria ser odiado, maldito. A compaixão de Estêvão, fruto de uma paz que ele, Saulo, jamais conhecera no fastígio das posições mundanas, impressionava-o fundamente. Entretanto, sem saber por quê, a resignação e a doçura do agonizante assaltavam-lhe o coração enrijecido. Trabalhava, porém, intimamente, para não se comover com a cena dolorosa. Não se dobraria por uma questão de sentimentalismo. Abominaria aquele Cristo, que parecia requisitá-lo em toda parte, a ponto de colocar-se entre ele e a mulher adorada. O cérebro atormentado do futuro rabino suportava a pressão de mil fogos. Desprezara o orgulho de família e elegera Abigail para companheira de lutas, embora lhe não conhecesse os ascendentes familiares. Amava-a pelos laços da alma, descobrira no seu delicado coração feminino tudo quanto havia sonhado nas cogitações de ordem temporal. Ela sintetizava as suas esperanças de moço; era o penhor do seu destino, representava a resposta de Deus aos apelos da sua juventude idealista. Agora, abrira-se entre ambos um abismo profundo. Irmã de Estêvão! Ninguém ousara afrontar-lhe a autoridade na vida, a não ser aquele ardoroso pregador do “Caminho”, cujas ideias jamais se poderiam casar com as suas. Detestava aquele rapaz apaixonado pelo ideal exótico de um carpinteiro, e tinha culminado nos propósitos de vingança. Se desposasse Abigail, jamais seriam felizes. Ele seria o verdugo, ela a vítima. Além disso, sua família, aferrada ao rigorismo das velhas tradições, não poderia tolerar a união, depois de conhecidas as circunstâncias.

Levou as mãos ao peito, dominado por angustioso desalento.


30 Em pranto, Abigail acompanhava a agonia dolorosa do irmão, cujos derradeiros minutos se escoavam lentamente. Penosa emoção apossara-se de todas as suas energias. Na dor que a dilacerava nas fibras mais sensíveis, parecia não ver o noivo que lhe seguia os menores movimentos, entre surpreso e estarrecido. Com muito cuidado, a jovem sustinha a fronte do moribundo, depois de haver sentado para conchegá-lo carinhosamente.

Observando que o irmão lhe lançava o último olhar, exclamou angustiada:

— Jeziel, não te vás… Fica conosco! Nunca mais nos separaremos!…

Ele, quase a expirar, ciciava:

— A morte não separa… os que se amam…


31 E, como se houvera lembrado algo de muito grato ao coração, arregalou os olhos desmesuradamente, numa expressão de imenso júbilo:

— Como no Salmo… de David… — dizia arrastadamente — podemos… dizer… que o amor… e a misericórdia… seguiram… todos os dias… de nossa vida… n

A jovem escutava-lhe as derradeiras palavras, comovidíssima. Enxugava-lhe o suor sanguinolento do rosto, que se iluminava de uma serenidade superior.

— Abigail… — murmurava ainda como num sopro —, vou-me em paz… Quisera ouvir-te na prece… dos aflitos e agonizantes…

Ela recordou os últimos momentos do suplício do genitor, no dia inesquecível da separação nos calabouços de Corinto. De relance, compreendeu que, ali, outras forças se encontravam em jogo. Não mais Licínio Minúcio e os sequazes cruéis, mas o próprio noivo transformado em verdugo, por um terrível engano. Afagou com mais carinho a cabeça sangrenta. Conchegou o moribundo ao coração como se fosse uma adorável criança. Então, embora rígido e inquebrantável na aparência, Saulo de Tarso observou, mais nitidamente, o quadro que nunca mais lhe sairia da imaginação. Guardando o moribundo no regaço fraterno, a jovem elevou o olhar para o alto, mostrando as lágrimas que lhe caíam pungentes. Não cantava, mas a oração lhe saía dos lábios como a súplica natural do seu espírito a um pai amoroso que estivesse invisível:

 32

Senhor Deus, pai dos que choram,

Dos tristes, dos oprimidos,

Fortaleza dos vencidos,

Consolo de toda a dor,

Embora a miséria amarga

Dos prantos de nosso erro,

Deste mundo de desterro,

Clamamos por vosso amor!


Nas aflições do caminho,

Na noite mais tormentosa,

Vossa fonte generosa

É o bem que não secará…

Sois, em tudo, a luz eterna

Da alegria e da bonança

Nossa porta de esperança

Que nunca se fechará.


Quando tudo nos despreza

No mundo da iniquidade,

Quando vem a tempestade

Sobre as flores da ilusão!

Ó Pai, sois a luz divina,

O cântico da certeza,

Vencendo toda aspereza,

Vencendo toda aflição.


No dia da nossa morte,

No abandono ou no tormento,

Trazei-nos o esquecimento

Da sombra, da dor, do mal!…

Que nos últimos instantes,

Sintamos a luz da vida

Renovada e redimida

Na paz ditosa e imortal.


33 Terminada a prece, Abigail tinha o rosto orvalhado de pranto. Sob a carícia suave de suas mãos, Jeziel aquietara-se. Palidez de neve caracterizava-lhe a face cadavérica, aliada à profunda serenidade fisionômica. Saulo compreendeu que ele estava morto. E enquanto a jovem de Corinto se levantava, cuidadosamente, como se o cadáver do irmão requisitasse toda a ternura do seu espírito bondoso, o moço tarsense aproximou-se de cenho carregado e falou com austeridade:

— Abigail, tudo está consumado e tudo terminou, também, entre nós.


34 A pobre criatura voltou-se com assombro. Então não lhe bastavam os golpes recebidos? Seria possível que o noivo amado não tivesse uma palavra de conciliação generosa naquela hora difícil da sua vida? Receberia a humilhação mais fria com a morte de Jeziel e ainda por cima o abandono? Consternada por tudo que viera encontrar em Jerusalém, entendeu que precisava utilizar todas as energias, para não cair nas provas ríspidas que lhe haviam sido reservadas. E viu logo que, no orgulho de Saulo, não encontraria consolação. Num momento, chegou às mais latas conclusões, quanto ao papel que lhe competia em tão embaraçosas conjunturas. Sem recorrer à sensibilidade feminina, cobrou ânimo e falou com dignidade e nobreza:

— Tudo terminado entre nós, por quê? O sofrimento não deveria escorraçar o amor sincero.

— Não me compreendes? — replicou o orgulhoso rapaz… — Nossa união tornou-se inexequível. Não poderei desposar a irmã de um inimigo de maldita memória, para mim. Fui infeliz escolhendo esta ocasião para tua visita a Jerusalém. Sinto-me envergonhado não só diante da mulher com quem nunca mais poderei unir-me pelo matrimônio, como perante os parentes e amigos, pela situação amarga que as circunstâncias interpuseram no meu caminho…


35 Abigail estava pálida e penosamente surpreendida.

— Saulo… Saulo… não te envergonhes perante meu coração. Jeziel morreu estimando-te. Seu cadáver nos escuta — acentuava com doloroso acento. — Não posso obrigar-te a desposar-me, mas não transformes nossa afeição em ódio surdo… Sê meu amigo!… Ser-te-ei eternamente grata pelos meses de ventura que me deste. Voltarei amanhã para casa de Ruth… Não te envergonharás de mim! A ninguém direi que Estêvão era meu irmão, nem mesmo a Zacarias! Não quero que algum amigo nosso te considere um carrasco.


36 Observando-a naquela generosidade humilde, o moço de Tarso teve ímpetos de estreitá-la ao coração, como se o fizera a uma criança. Quis avançar, apertá-la contra o peito, cobrir-lhe de beijos a fronte bondosa e inocente. Súbito, porém, vieram-lhe à mente os seus títulos e atribuições; via Jerusalém revoltada, tisnando-lhe a reputação de amargas ironias. O futuro rabino não poderia ser vencido; o doutor da Lei rígida, e implacável, devia sufocar o homem para sempre.

Mostrando-se impassível, replicou em tom áspero:

— Aceito o teu silêncio em torno das lamentáveis ocorrências deste dia; voltarás, amanhã para casa de Ruth, mas não deves esperar a continuação das minhas visitas, nem mesmo por cortesia injustificável, porque, na sinceridade dos de nossa raça, os que não são amigos são inimigos.


37 A irmã de Jeziel recebia aquelas explicações com espanto profundo.

— Então, abandonas-me inteiramente, assim? — perguntou entre lágrimas.

— Não estás desamparada — murmurou inflexivelmente —, tens os teus amigos da estrada de Jope.

— Mas, afinal, por que odiaste tanto a meu irmão? Ele foi sempre bondoso… Em Corinto nunca ofendeu a ninguém.

— Era pregador do malfadado carpinteiro de Nazaré — esclareceu, contrafeito e ríspido —; além disso, humilhou-me diante da cidade inteira.


38 Abigail, compelida pela severidade das respostas, calou-se inteiramente. Que poder teria o Nazareno para atrair tantas dedicações e provocar tantos ódios? Até ali, não se interessara pela figura do famoso carpinteiro, que morrera na cruz, como malfeitor; mas o irmão lhe dissera ter encontrado nele o Messias. Para seduzir um caráter cristalino, como Jeziel, o Cristo não poderia ser um homem vulgar. Lembrava o passado do irmão para considerar que, no caso da rebeldia paterna, conseguira manter-se acima dos próprios laços do sangue para admoestar o genitor, amorosamente. Se tivera forças para analisar os atos paternos com o preciso discernimento, era preciso que aquele Jesus fosse muito grande, para que a ele se consagrasse, oferecendo-lhe a própria vida ao recobrar a liberdade. Jeziel, a seu ver, não se enganaria. Conhecendo-lhe a índole, do berço, não era possível que se deixasse iludir em suas convicções religiosas. Sentia-se, agora, atraída para aquele Jesus desconhecido e odiado injustamente. Ele ensinara o irmão a bem-querer os próprios verdugos. Que lhe não reservaria, pois, ao seu coração sedento de carinho e de paz? As últimas palavras de Jeziel exerciam sobre ela uma influência profunda.


39 Abismada em profundas cogitações, notou que Saulo abrira a porta, chamando alguns auxiliares, que se precipitaram por cumprir-lhe as ordens. Em poucos minutos os despojos de Estêvão eram removidos, enquanto amigos numerosos cercavam o jovem par, expansivamente loquazes e satisfeitos.

— Que é isto — perguntou um deles a Abigail —, ao notar-lhe a túnica manchada de sangue.

— O sentenciado era israelita — atalhou o moço tarsense, desejoso de antecipar explicações — e, como tal, amparamo-lo na hora extrema.

Um olhar mais severo deu a entender à jovem quanto devia conter as emoções próprias, longe e acima das ocorrências verídicas.


40 Daí a minutos, o velho Gamaliel chegava e solicitava ao ex-discípulo alguns momentos de atenção, em particular.

— Saulo — disse bondoso —, espero partir na semana próxima para além de Damasco.  †  Vou descansar junto de meu irmão e aproveitar a noite da velhice para meditar e repousar o espírito. Já fiz a necessária notificação no Sinédrio e no Templo, e acredito que, dentro de poucos dias, serás efetivamente provido no meu cargo.

O interpelado fez um ligeiro gesto de agradecimento cuja frieza mal disfarçava o abatimento que lhe ia na alma.

— Entretanto — prosseguia o generoso rabino, solicitamente — tenho um último pedido a fazer-te: É que tenho Simão Pedro em conta de um amigo. Esta confissão poderá escandalizar-te, mas, sinto-me bem ao faze-la. Acabo de receber sua visita, pedindo a minha interferência para que o cadáver da vítima de hoje seja entregue à igreja do “Caminho”, onde será sepultado com muito amor. Sou o intermediário do pedido e espero não me recuses o obséquio.

— Dizeis “vítima”? — perguntou Saulo admirado. — A existência de uma vítima pressupõe um algoz e eu não sou verdugo de ninguém. Defendi a Lei até ao fim.


Emmanuel



[1] Salmo XXIII, de David.

(Paulo e Estêvão, FEB Editora. Primeira parte. Capítulo 8, pp. 136 a 152. Indicadores 11 a 40)


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