O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Histórias e anotações — Irmão X


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Duas semanas

1) Quando penetramos no aposento íntimo do abastado comerciante João de Toledo, estavam à mostra as folhas do diário em que lançara, do próprio punho, as resumidas anotações das próprias atividades nas duas últimas semanas daquele mês de abril:


2) 17/04 n — Acordei hoje sobressaltado. Sonhei estar abraçando meu pai, morto há vinte anos. Não era precisamente um sonho. Era uma perfeita visão, dentro do quarto, mas compreendo a elucidação, pois comi lombo de porco à ceia, com boa rega de vinho verde. Ao almoço, contei o sucedido a minha mulher que acredita numa comunicação espiritual. Ora, ora! Crendices! Etelvina, apesar de boa esposa; é mulher de cabeça fraca. Na parte da tarde, consegui armazenar mais duzentos sacos de arroz, completando o total de mil e quinhentos.


3) 18/04 — Etelvina amanheceu nervosa, chorando. Disse haver sonhado também com meu pai, a rogar-me serviço à beneficência. Dizia que o velho chegara a indicar o cofre, repetindo o meu nome em voz alta. Baboseiras de minha mulher. Ela não bebe e come pouco, mas é impressionável. Bastou que eu falasse de sonho à mesa para que igualmente se iludisse, a respeito de comunicações. Consegui adquirir mais trezentos sacos de feijão imunizado.


4) 19/04 — Nova choradeira de minha mulher. Declarou ter visto meu pai morto (oh! estupidez humana!) e pediu-me levá-la a um Centro Espírita. Neguei. Se as cousas continuarem dessa forma, devo levá-la a um psiquiatra. Dei um pulo a Caxias e obtive a promessa de mais cento e oitenta sacos de arroz. Ótimo preço.


5) 20/04 — Uma comissão de pessoas religiosas veio hoje a minha casa insinuando a concessão de um dos meus lotes na cidade para o levantamento de uma casa destinada ao amparo de crianças vadias. Achei muita graça. Se querem posses que vão trabalhar. Virei-me quanto pude e comprei mais duzentos e vinte sacos de arroz, somando o total de mil e novecentos nos meus quatro galpões. Dentro de um a dois meses, a alta será compensadora. Pretendo adquirir mais imóveis.


6) 21/04 — Passei o dia em Niterói, articulando com amigos a compra de quinhentos sacos de arroz paulista, do melhor. Margem excelente. O artigo chegará em caminhões.


7) 22/04 — Etelvina passou o dia chorando. Disse ter visto meu pai a recomendar-me auxílio para as crianças necessitadas. Não compreendo. Meu pai morreu há muito tempo. Minha mulher quer ir a um Centro Espírita. Que vá sozinha. Não creio em bobagem. Ouvi vários atacadistas. O arroz subirá assustadoramente, depois da safra.


8) 23/04 — Bolas! Etelvina veio do Centro Espírita com um papelucho escrito, dizendo ser comunicação de meu pai. A assinatura é a do velho. Pede para que eu assente a cabeça, a fim de cultivar a saúde. Fala em caridade, repouso, meditação! Ora essa! Sou um homem conhecido. Esses espíritas devem ser grandes velhacos. Proibi Etelvina de qualquer novo entendimento com esses mandriões. Amanhã, imitarão a letra de meu pai para arrancar-me o dinheiro. Tudo isso deve ser chantagem religiosa. Mensagem! O conto da mensagem, isso é o que é. Não sou tão lorpa. Recebemos quatrocentos sacos de arroz paulista. Verdadeira pechincha. Tudo indica bons lucros.


9) 24/04 — Armazenei mais seiscentos sacos de feijão. Estoque excelente. Vantagens imediatas.


10) 25/04 — Etelvina no mesmo choro em casa, declarando estar vendo meu pai constantemente. Isso é de enlouquecer. Os negócios me tomam tempo, sem que eu possa conduzi-la a tratamento. Os empregados querem aumento. Era o que faltava. Não dou um vintém. Rua para quem reclamar. Comprei mais seiscentos sacos de arroz brunido para saída breve. Espero cinco milhões em maio próximo.


11) 26/04 — Chegada de mil e oitocentos sacos de arroz paulista. Acompanhei a descarga pessoalmente. Suei como estivador. Lucro certo.


12) 27/04 — Uma senhora espírita com dez crianças veio procurar-me no armazém com uma lista de auxílio. Não assinei. Vi tudo. Etelvina no Centro atraiu a exploração. A senhora acabou solicitando um saco de arroz, mas aconselhei-a a levar os meninos para a Baixada e plantar. Caridade é manto de vagabundos. Comprei mais oitocentos sacos de feijão de Minas.


13) 28/04 — Minha mulher piora, dia a dia. Contei ao meu gerente o que se passa e ele me falou que é mediunidade. Até ele! Não sei se um homem de bem, falando nisso, dá para rir ou pensar. Consegui mais quinhentos sacos de arroz.


14) 29/04 — Passei o dia comprando mais feijão. A praça começa os primeiros sinais de alta.


15) 30/04 — Etelvina quis conversar hoje em novas lições de meu pai e mandei que calasse a boca. Não quero comunicações, não quero notícia de mortos. Vou interná-la amanhã numa clínica de repouso, em Santa Tereza. Quero sossego. Meus representantes estão autorizados a começar as vendas depois de amanhã. Estaremos até a noite nos armazéns, recolhendo novas remessas do arroz que chegará de São Paulo. Uma frota de quarenta caminhões. Até vinte de maio próximo, espero o lucro de cinco a seis milhões para começar, em base mínima.

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16) Estas eram as últimas notas do abastado negociante Pedro João de Toledo quando lhe vimos enfim no lar o corpo maduro e hirto, que tombara repentinamente na rua, depois de algumas horas em trânsito agitado para averiguações no necrotério. [Qualquer relação deste caso com a parábola do homem rico narrada por Lucas é mera coincidência.]


Irmão X

(Humberto de Campos)



[1] No original as datas referentes ao mês de abril, estão sem o nº equivalente a esse mês no calendário.


Texto extraído da 1ª edição desse livro.

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