O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Cartas de uma morta — Maria João de Deus


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O primeiro dia da erraticidade

(Sumário)

1. Chegara o dia 2 de Novembro de 1915 e mais de mês já havia transcorrido sobre a data de minha desencarnação.

2 Nesse dia, sob o império de grande dissabor, que me advinha daquela incompreensão, dirigi-me tristemente à Igreja para orar, aproveitando a quietude de sua soledade. 3 Lá penetrando, porém, compreendi que não me achava só, pois percebia que outras almas, talvez padecendo a mesma dor que eu experimentava, conservavam-se extáticas ao pé dos altares, onde foram buscar um pouco de consolo e de esclarecimento.

4 Todavia, assim que me entreguei aos arrebatamentos da prece, senti uma intraduzível vibração percorrer todas as fibras do meu ser, como se fosse sofrer um vágado, afigurando-se-me invadida pela influência do sono; mas durou poucos instantes, semelhante estado.


Amargura e alegria, saudade e júbilo


2. Despertei novamente e vi-me ao lado de uma legião de seres, que se achavam genuflexos como eu. 2 Já outro, porém, era o templo no qual me encontrava. Havia um recinto amplo e majestoso, construído à base de elementos que não é possível qualificar, por falta de termos equivalentes no vocabulário humano. 3 Nesse magnificente interior não existia determinado santuário para orações, mas, sim, obras de arte sublime, destacando-se uma tribuna formada de matéria luminosa, como se fosse feita de névoas esvanecentes. 4 Ouvia-se, provinda de um coro dulcíssimo de vozes meigas e cristalinas, uma prece ao Criador, repleta de harmonias e de excelsitudes. E aquele cântico melodioso era mais um cicio de asas ou murmúrio de favônios unindo as pétalas das flores.

5 Aí, mais que nunca, relembrei dos afetos que me ligavam ao lar; e um incoercível receio inundou o meu espírito, amedrontado ante a perspectiva de separação eterna, porque, após as incertezas e as agonias da morte, eu sabia ter sido arrebatada para um local distante, a menos que estivesse possuída de extremas alucinações.

6 De onde provinham aquelas cadências harmoniosas de cavatina celeste, que me faziam vibrar de emotividade até às lágrimas?

7 Então, toda minhalma chorava de amargura e alegria; havia em meu coração um misto de saudade e júbilo inexprimíveis.


A irmandade universal da Divina Causa


3. Foi quando se desenhou, na tribuna de neve translúcida, majestosa figura de um parlamentário, parecendo-me que ali se materializara, por um processo misterioso e em forma humana, o anjo celeste, no qual se destacavam todas as perfeições.

2 Irradiava do seu olhar benigno e fulgurante uma onda de indescritível ternura, que transbordava na sua voz, saturada de suavidade e doçura:

— “Irmãos, — começou ele, — a nossa prece, o hino dos nossos corações, mistura-se a todas as harmonias do Infinito, elevando-se para Deus numa torrente de melodia e de aroma. 3 O laço que neste momento une os nossos Espíritos, misto de luzes da contextura estelar, igualmente prende todos os sistemas planetários do Ilimitado, que se irmanam no amor mais sublime à sua Divina Causa.

4 “Vós, que aqui vos encontrais, vindos das remotas plagas das sombras terrenas! Possuídos de angústia e de esperança, que se refletem nas lágrimas dos vossos olhos, no íntimo ainda guardais acerbas recordações da existência no exílio, como os carvões que sobrevivem no coração da Terra longínqua sob os escombros das florestas incendiadas. 5 Constituís, por isso, a multidão de almas errantes e sofredoras, perambulando em derredor dos objetos que formaram a paisagem das vossas miragens enganadoras, porque a única vida real é a vida do Espírito de posse da sua liberdade preciosa.”


Um pálido raio de luz na noite do raciocínio


4. “Toda a existência terrena está calcada nos instrumentos que servem para as manifestações espirituais e, infelizmente, a vossa excessiva dedicação a esses aparelhos viciou o vosso mundo emotivo, circunscrevendo as suas possibilidades ao ambiente terrestre, onde apenas possuíeis pálida réstia de luz na noite de um fraco raciocínio.

2 “Não soubestes, contudo, dentro da pequenez educacional, que vos foi parcamente ministrada, descerrar o velário angusto que encobre o santuário infinito da vida, acomodando-vos entre as acanhadas concepções, que vos foram impingidas pelas ideias religiosas e que amesquinham a grandeza do Criador do Universo, na face do orbe que vindes de abandonar. 3 Criar um local fantástico de gozo beatífico ou de sofrimento eterno e inelutável, centralizar a vida em um globo de sombra, é somente obra da ignorância desconhecedora da onipotência e sabedoria divinas.

4 “É que a vida não palpita, apenas, no mundo distante, onde abandonastes as vossas derradeiras ilusões: em toda parte ela pulula triunfante e o veículo das suas manifestações é o que se diversifica na multiplicidade dos seus Planos. 5 Os mundos são a continuidade dos outros mundos e os céus se sucedem ininterruptamente através dos espaços ilimitados.”


Na pátria comum de todas as almas


5. “Faz-se mister que dispais da vossa mente a roupagem dos enganos materiais, permitindo que a espiritualidade interior vibre livremente em toda a intensidade da sua divina potência. 2 Tendes o intelecto atulhado de lembranças nocivas, as quais precisais alijar para o reencontro da felicidade. Não vos demoreis em faze-lo.

3 “O corpo de vossas impressões persiste, desastrosamente, impelindo-vos a vertiginosas quedas sobre os pauis, de onde regressastes, repletos de saudade e de amargurada tristeza.

4 “Considerai o verdadeiro panorama da vida universal: sistema de mundos venturosos enchem o universo de harmonias excelsas; entre as distâncias infindas do éter, descobrem-se terras de encantamentos e divinas grandezas! Sobre as vossas cabeças elevam-se os cânticos das vias-lácteas siderais e sob os vossos pés ouvem-se os hinos dos sóis resplandecentes.

5 “Ponderai sobre essa imensidade sem princípio e sem fim e reconhecei que o Espaço é a pátria comum de todas as almas. 6 Terminadas as lutas majestosas, que os seres levam a efeito pelo seu aprimoramento anímico, aqui se reúnem para elaboração de novos projetos grandiosos em novos surtos de perfeição e de progresso.

7 “Nas existências planetárias, como a que acabais de deixar, as almas lutam e sofrem os grandes padecimentos remissores; às vezes, conhecem de perto a taça das amarguras, mergulhando no oceano das lágrimas, que salvam e regeneram. 8 Aí nessas arenas augustas do aprendizado e da redenção cauterizam-se feridas cancerosas, curam-se úlceras malignas, aprimoram-se sentimentos desviados da sua pureza, crescem os empreendimentos felizes e conhece-se o grande ensinamento da felicidade, oriunda da solidariedade salvadora.”


Os venturosos


6. “Venturosos são os que se conduzem através de todas as barreiras e percalços, com o estandarte luminoso da fé, distribuindo os inesgotáveis bens da sua piedade e do seu amor. 2 Vivem serenos na paz de suas consciências, entre as ambições corruptoras que os perseguem ao longo dos caminhos e seus dias representam um inaudito esforço de resistência contra o mal deprimente e oprobrioso.

3 “Padecem continuadamente, e tombando nas batalhas morais, sangrando de dor mas envolvidos no halo bendito da esperança e da crença, despertam jubilosos para a existência verdadeira, onde o egoísmo é uma palavra desconhecida e a confraternização universal é a mais legítima das realidades. 4 Retemperam as suas forças, trabalhadas pela intensa luta da vida, nos arquipélagos dourados de paz e de repouso no infinito dos espaços e assim se prepararam para outras refregas, para outras iniciativas, na interminável e abençoada atividade espiritual, a fim de que se dilatem as suas potências em todos os domínios da sabedoria e do amor!

5 “Irmãos bem amados, alimentemos o anelo da vida perfeita!

6 “Almas fracas e desditosas, cheias de saudades e desenganos, sacudi a poeira das estradas palmilhadas, abri os vossos corações para a luz como sacrários de ouro sob um plenilúnio divino!

7 “Esquecei temporariamente o teatro de vossos infortúnios, onde muitas vezes fostes traídas e humilhadas, mas onde também obtivestes o alvará de vossa liberdade preciosa. Elevemos ao Pai a nossa oração de reconhecimento e de amor, da qual se evolem todos os nossos mais puros sentimentos, transubstanciados em harmonias celestes!…”


Na falange dos Espíritos benignos


7. Terminada que foi a alocução, pronunciada com a mais sagrada das eloquências e que, de modo geral, imperfeitamente reproduzo, com os meus olhos nublados de pranto, ouvi os soluços de muitos dos circunstantes, que choravam sob o império da mais forte emoção.

2 Então oramos, acompanhando os inspirados impulsos daquele enviado celeste, que procurava incutir-nos a fé, a esperança e a resignação, através das suas palavras compassivas e piedosas.

3 Um luar indescritível, projetando-se na tribuna que lhe guardava ainda a luminosa figura, banhou as nossas frontes, e pude observar que a atmosfera se impregnava de capitoso perfume. 4 Percebi ainda que, sobre as naves encantadas do templo, profusamente caíram flores iguais às rosas terrenas, mas que se desfaziam ao tocar em nossas cabeças como taças fluidas de luminosidade e de aroma.

5 Ah, como chorei naquele dia! Minhalma frágil se comovia sob indômita emotividade; mas, desde aquele instante, incorporei-me à grande falange dos Espíritos benignos que mourejavam em suas tarefas ao lado da Terra, trabalhando pelo bem dos seus semelhantes, beneficiando-se simultaneamente no mais útil dos aprendizados.


Maria João de Deus


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