O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Ave, Cristo! — Emmanuel — 2ª Parte


5

Expiação

1 O regresso de Taciano e da filha a Lião ( † ) verificou-se em manhã radiosa de luz.

Informado pelo sogro, cuja presença suportara com dificuldade, de que os médicos haviam recomendado o retorno de Lucila, com urgência, ao clima provinciano, resolveu retomar, sem detença, o caminho do lar.

A volta, contudo, fora morosa, em razão dos ventos contrários que lambiam o mediterrâneo.

Os nossos viajantes entristeciam-se com a demora, ansiosos que estavam pela recuperação da paz no campo.

O patrício sentia-se mais tranquilo, acerca da filha doente. Se a esposa deliberara efetuar a viagem, a conselho dos facultativos, semelhante medida era bem o sinal de que a enferma não estaria em condições tão precárias quanto se supunha.

Certo, Lucila restabelecer-se-ia, calmamente na Vila Vetúrio. A família não sofreria golpes de maior importância.

Por esse motivo, deixava-se levar por um desejo único: rever o velho filósofo e a filha, cujas afeições eram abençoado estímulo a levantar-lhe as forças para viver.

Ele e Blandina gastavam longas horas, conversando sobre música ou projetando excursões campestres, na expectativa do longo e venturoso abraço da volta…

No entanto, dolorosa decepção aguardava-os.


2 Realmente, encontraram Lucila forte e restaurada, na entusiástica preparação do casamento com o tio, mas, estarrecidos, pai e filha receberam as infaustas notícias da cidade.

O afinador e a filha haviam sofrido a perseguição considerada legal.

O enviado imperial promovera minuciosas devassas e os nazarenos haviam experimentado os rigores da lei. Muitos se mantinham fugidos, outros haviam sido mortos.

Taciano, abatido, ouvia os apressados informes dos domésticos…

Algumas horas depois da chegada à vila, Helena provocou um encontro mais íntimo com o esposo, crivando-o de perguntas acerca da saúde paterna e explicando as razões que a fizeram ausentar-se, precipitadamente, de Roma.

Esperava-o, ansiosa, quando o médico de confiança lhe aconselhara o retorno imediato ao clima gaulês. Lucila, frágil, parecia uma flor a extinguir-se. Não vacilara, assim, em voltar sem delonga.

O marido escutava, absorto, mostrando-se mentalmente em outra parte.

A filha de Vetúrio conhecia os motivos de semelhante distração. Deixara Blandina, nos aposentos particulares, inconformada e lacrimosa, e, pela atitude da filha, não podia ignorar que o esposo, por dentro, naquele instante, era um homem espiritualmente transtornado.


3 Fixou-o, com mais atenção, e falou, num tom de voz em que se misturavam as vibrações de mágoa e de atrevimento:

— Taciano, não posso calar a revolta justa que me assoma ao espírito, à frente do desencanto a que nos constranges em casa. Esperava, sinceramente, o teu regresso, não apenas na condição de mulher que aguarda o companheiro, mas também na posição de mãe, aflita pelo reencontro da filhinha distante… Contudo, a ausência de cristãos desclassificados, que sofreram simplesmente o ajuste necessário com as leis, compele-te a terrível máscara de surpresa e de dor, com o agravante de haveres permitido a fascinação de Blandina pelos sortilégios desses feiticeiros. Temos nossa filha doente e prejudicada por desleixo de tua parte. De nada me valeu tão longo sacrifício pela primogênita, quando relegaste nossa filhinha mais nova a superstições e desvarios, porque não creio esteja Blandina isenta da loucura galileia. Ainda se estivéssemos à frente de pessoas respeitáveis…

— Helena! — Atalhou o companheiro, visivelmente contrariado — guarda cautela com as tuas referências! Basílio e a filha eram nossos amigos diletos. Se adotavam o Cristianismo por norma de fé, jamais se reportavam a isso em nossas conversações. Nossa comunhão foi sempre a mais digna.

— Não me parece, — considerou a esposa, irônica; — a tua reação diz bem dos teus sentimentos. Ao regressar, fui bem informada de que a filha do liberto de Carpo guardava a intenção de substituir-me. Dominado por semelhante mulher, qualquer homem desavisado, naturalmente, nada vê…

— É uma calúnia! — Clamou Taciano, principiando a exasperar-se. — Lívia era casada e não seria capaz de descer do compromisso assumido.


4 O patrício quis atirar-lhe em rosto quanto sabia, de experiência própria, do procedimento dela mesma, na estreita ligação com Teódulo, contudo, julgou prudente calar-se.

Finda curta pausa, continuou:

— Ainda agora, em Roma, num ligeiro entendimento com Cláudio Lício, a cuja amizade recomendei-lhe o marido, vim a saber de sua viuvez… Não te doerá ao coração feminino a desventura de uma pobre e indefesa mulher?

— Ah! era então casada?

Sim, cheguei a abraçar-lhe o esposo, Marcelo Volusiano, que desejava tentar a vida em Roma, onde apareceu morto nas águas do Tibre. ( † ) Esperava rever nossa amiga para transmitir-lhe a notícia, entretanto…

Helena empalideceu, de súbito, compreendendo que o sedutor de Lucila havia mentido até ao fim.


5 Começou a refletir na trama escura dos destinos do seu grupo familiar, mas, interessada na recuperação da própria tranquilidade, tratou de esquecer tudo, adoçou a expressão da bela máscara fisionômica e, fingindo dignidade ferida, exclamou:

— Querido, conversemos sem irritação. De certo, não me cabia ver nossa casa invadida por estranha influência, sem reagir, de algum modo, todavia, tudo fiz para não desmerecer de tua confiança, em se tratando de amigos do teu círculo pessoal. O velho afinador e a filha foram presos em movimentado conventículo do culto proibido, na casa miserável de um ancião reconhecidamente louco, que respondia pelo nome de Lucano Vestino. Egnácio Valeriano e a esposa, agora ausentes, são romanos de excelente linhagem. Viajaram para cá em minha companhia. Tecemos por isso fortes laços afetivos. Compreendendo a perigosa situação dos detidos e sem esquecer-me de que a moça exercera o mister de preceptora de nossa filha, de conformidade com as recomendações de Teódulo impetrei o indulto das autoridades para ambos… O legado de Augusto, entretanto, esclareceu à nossa casa que Basílio foi tão singularmente audacioso no insulto às nossas tradições e às nossas leis que, muito a contragosto, se viu obrigado a levá-lo aos cavaletes de suplício, nos quais, segundo supomos, morreu de forte susto, de vez que não chegou a ser supliciado. Continuei a trabalhar pela libertação da jovem, mas vi frustrados todos os meu intentos, porque o representante de César, de acordo com a voz pública, apaixonou-se por ela separando-a das demais mulheres encarceradas. Lívia, pelas informações que obtive, passou a viver num gabinete isolado, onde Valeriano ia vê-la diariamente. Enciumada, Clímene, a esposa de Egnácio, ao que nos consta, mandou aplicar-lhe um cáustico aos olhos, por intermédio de uma criada, de nome Sinésia; todavia, a prisioneira, não se sabe  como e auxiliada não se sabe por quem, conseguiu evadir-se pouco depois, valendo-se das sombras da noite. Não pude  saber se a pobrezinha ausentou-se  ilesa ou se os olhos dela foram vítimas da perversidade de Clímene. Procurei a única pessoa capaz de aclarar-nos com segurança, a servidora Sinésia; contudo, Egnácio Valeriano, quando tomou conhecimento da fuga, foi acometido de estranha demência. Gritava pela mulher amada, em voz estentórica, e, depois de barbaramente espancar a criada, tentando arrancar-lhe alguma confissão, determinou fosse ela algemada para interrogatório no dia seguinte, mas, ao amanhecer, o cadáver da infeliz foi encontrado na prisão, rígido e frio. Sinésia foi assassinada por alguém que soube ocultar-se nas teias de impenetrável mistério.

— Como tudo isso é doloroso! — Deplorou Taciano, de olhar nublado.


6 Helena percebeu a diferença que se operara nele e prosseguiu, com maior inflexão de carinho:

— Sabendo por antecipação como te afligiriam os deploráveis sucessos, determinei providências para que a casinha de Basílio fosse guardada a cavaleiro de qualquer irreverência das autoridades. Espero possas encontrar a residência humilde nas mesmas condições em que o velho a deixou. Tudo sem mudança…

E, à frente do companheiro prostrado pela dor, completou a mentirosa versão dos fatos, ajuntando:

— Todavia, não me preocupei tão somente com esse aspecto da situação. Convicta de que chegarias, de momento para outro, encarreguei Teódulo de visitar o porto de Massília, ( † ) na esperança de colher qualquer informe sobre um possível embarque da jovem para algum lugar.

Taciano, angustiado, pronunciou breves palavras de reconhecimento. A suposta benemerência da esposa, de alguma sorte, redimia-a aos seus olhos.


7 Ao entardecer, encaminhou-se para o domicílio singelo.

A sós, na peça estreita, deu curso à emoção que lhe fluía da alma…

Contemplou a harpa, agora muda, sentou-se na poltrona que lhe era familiar e, a distância dos olhos alheios, cedeu ao pranto convulsivo.

Recordava-se de Basílio, encanecido e confiante, revia Lívia em pensamento, recapitulando a noite das despedidas, e não sabia se chorava de amor ou de compaixão.

Cambaleante, abeirou-se do pequeno gabinete em que o velho se entregava a estudos habituais e, após compulsar alguns trechos de leitura, encontrou anotações evangélicas do afinador, que lhe denunciavam as predileções religiosas.

Algumas notas autobiográficas enfileiravam-se, esclarecedoras.


8 Basílio não era cristão de muito.

Em Cipro, ( † ) devotava-se ao culto de Serápis curador.

Somente em Massília, meses antes da transferência para Lião, é que conhecera o Evangelho, afeiçoando-se a Jesus.

Receitas e instruções aos enfermos, do tempo em que venerava o antigo deus egípcio, então transformado em companheiro de Esculápio, misturavam-se a preciosas anotações alusivas ao Novo Testamento. Poesias de louvor às antigas divindades e apontamentos apostólicos do Cristianismo nascente jaziam colecionados, revelando-lhe a caminhada espiritual.


9 Por último, deteve-se Taciano, admirando curioso trabalho de Basílio, intitulado “De Serápis a Cristo”, que lhe marcava a definitiva transição.

O genro de Vetúrio examinou a documentação com um respeito que jamais consagrara a qualquer assunto ligado à personalidade do Messias Galileu.

Em seguida, abismou-se em pesadas cismas…

Por que se via, assim, perseguido pelo Cristo em toda a parte?

Lembrou o primeiro contato com o pai, arrebatado pelo martírio, em supremo testemunho de fé.

Recordou a longínqua festa da Vila Vetúrio em que o pequenino Silvano perdera a vida…

Rememorou o sacrifício de Rufo, o escravo decidido e fiel ao próprio ideal, e em lágrimas refletiu nos derradeiros dias de sua mãe, insulada no ambiente doméstico.

As reminiscências do enforcamento de Súbrio passaram, nítidas, por sua imaginação…

Entretanto, continuava odiando os princípios nazarenos.


10 Não podia conceber uma Terra em que os senhores se nivelassem com os escravos, recusava a teoria do perdão irrestrito, jamais concordaria com a solidariedade entre patrícios e plebeus…

Os deuses antigos, as epopeias romanas, as conquistas dos imperadores e a palavra dos filósofos que haviam construído o Direito, na República e no Império, dominavam-lhe o coração com demasiado vigor para que pudesse desprender-se, facilmente, do mundo moral em que alicerçara a própria razão de ser, desde a meninice distante…

Fora consagrado a Cíbele e trazia no peito o selo ardente da fé que orientara os seus antepassados e, nessa confiança, pretendia morrer.

De que modo confrontar Apolo, o benfeitor triunfante da Natureza, com Jesus, triste homem judeu, crucificado entre malfeitores? Por que separar-se do culto da alegria e da fartura para submeter-se aos sinistros banquetes de sangue nos circos? Por que razão Basílio e Lívia haviam aderido ao movimento que se lhe afigurava detestável ideologia de espíritos infernais?


11 Contudo, amava-os, ainda, não obstante cristãos.

No antigo liberto encontrara a vida emocional da alma paterna e na jovem pudera surpreender um coração afim, capaz de fazer-lhe a felicidade, na condição de companheira ou irmã.

Acariciado pelo vento frio do crepúsculo, demorou-se o patrício, numa das janelas, meditando… meditando…

Quase noite fechada, quando se dispunha ao regresso, eis que Blandina lhe surge ao encalço.

A trêfega criaturinha procurava-o, aflita, por todos os cantos da herdade, e ao abraçá-lo foi acometida de longo acesso de choro.

O genitor, taciturno, tornou ao lar, reconduzindo-a em pranto…

No dia imediato entrou em entendimento com o proprietário do casebre, que o afinador alugara por tempo indefinido.

Taciano propunha-se conservá-lo para o culto das próprias recordações.

Reencontraria Lívia?


12 Pensara em avistar-se com o legado ( † ) de Augusto, ( † ) mas Egnácio Valeriano, depois de ligeira permanência na Aquitânia, ( † ) tornara à sede do Império.

Após adquirir o ninho singelo onde Basílio estacionara por tempo tão curto, diariamente passava lá o tempo que lhe sobrava das tarefas costumeiras, quase sempre seguido de Blandina, que não olvidava os ausentes.

As mãos infantis, minúsculas e frágeis, dedilhavam o instrumento, buscando imitar a amiga que partira, demandando rumo incerto, aplaudida pelo pai, que se distraía, em lhe reparando a diligência. Por mais lhe proibisse a mãezinha tais passeios, mais se empenhava em burlar a vigilância dos servos, a fim de reunir-se ao genitor em suas isoladas reflexões.

A amizade pelo filósofo e pela preceptora desterrada era cada vez mais intensa e mais viva em sua imaginação de criança.

Muitas vezes perguntava ao pai se Lívia tinha sido furtada nalgum assalto de Plutão e, noutras ocasiões, afirmava, cerrando os olhos, que o vovô Basílio se achava, sorridente, ao seu lado, abraçando-a.


13 Certa noite em que Taciano se demorara na choupana, além do hábito que lhe era próprio, Blandina, à porta, contemplava o firmamento constelado, quando, inesperadamente, desferiu uma exclamação de alegria, bradando, espantada:

— Vovô! Vovô Basílio, papai! Veja! está chegando!…

Fixou o gesto de quem abraçava algum ente querido e acrescentou, entusiástica:

— Paizinho, vovô está ao seu lado! Ao seu lado!…

Taciano nada via, mas a expressão felicíssima da filha ecoava-lhe fundo ao coração.

Rememorou antigas histórias em que os mortos tornavam à convivência com os vivos e, emocionando-se com as palavras da filhinha, admitiu que a sombra do amigo ali pairasse, realmente.


14 Teve a impressão de que o amado companheiro ali se mantinha invisível, como se lhe recebesse o hálito quente sobre o rosto.

De olhos brilhantes, animados pela chama de inexprimíveis sentimentos, recomendou à miúda interlocutora:

— Blandina, se vês realmente o vovô, porque não sabermos dele quando reencontraremos Lívia?

A pequena obedeceu e, com a naturalidade de quem se dirigia ao ancião ressuscitado, inquiriu:

— Vovô, o senhor não está ouvindo a pergunta de papai?

Segundos de pesada expectação rolaram no acanhado recinto.

— Que respondeu ele, minha filha?

Blandina fitou no genitor o olhar terno e confiante e informou:

— Vovô respondeu que estaremos todos juntos, quando escutarmos o Hino às Estrelas, outra vez…

Taciano sentiu que indefinível angústia lhe absorvia a voz e o coração. Calado, tomou a destra da pequenina para voltarem a casa, onde, ilhado em seu gabinete particular, engolfou-se em obcecantes e aflitivos pensamentos…


15 A existência em Lião prosseguiu expectante, rotineira, monótona…

Na primavera de 256, entretanto, a Vila Vetúrio engalanara-se para o casamento de Galba e Lucila, com a imponência característica das famílias abastadas da época.

O noivo, não obstante prematuramente envelhecido, e a jovem companheira, bela e fútil, pareciam irradiar otimismo e ventura.

Opílio, embora trôpego e fatigado, retribuindo a visita do genro, acompanhara o filho para a cerimônia dos esponsais.

O retorno dele, depois de tantos anos, trouxera grande interesse na capital da Gália Lugdunense. ( † ) O suntuoso palácio rural convertera-se, de novo, em centro importante de intrigas políticas, através de noitadas fulgurantes e alegres.


16 Cada vez mais próspero nos negócios materiais, o velhinho instituíra vultosas dádivas à pobreza, em homenagem ao consórcio da primeira neta. Festas expressivas foram organizadas, por vários dias, destacando-se a grande naumaquia, nos jardins da herdade, levada a efeito com inexcedível esplendor.

O encanecido sogro desdobrava-se em gentilezas por fazer-se amável com o enteado, mas ao contrário do que sucedia com Helena, imperturbável e feliz com a realização do sonho que lhe atormentava a ambição materna, Taciano não sabia como esconder a preocupação e a tristeza que lhe amarfanhavam o espírito.

É que Blandina definhava sem motivo justificado.

Possuída de incompreensível melancolia, a menina, por vezes, passava horas e horas, na câmara de repouso, a pensar e pensar…

Não valiam conselhos, nem pareceres médicos.

Pálida, estiolada, dava a ideia de viver, mentalmente, a enorme distância de si mesma.


17 Compareceu às solenidades dos esponsais, agarrada ao braço paterno, apesar da desaprovação de Helena que, diante do rostinho ossudo e descolorido, não tinha coragem para forçar determinações.

Percebendo-lhe a debilidade orgânica e talvez para ser agradável aos filhos, o avô Vetúrio, assim que os nubentes se ausentaram em direitura à capital do Império, propôs a mudança temporária da família para Baias, n no golfo maravilhoso de Neápolis, ( † ) onde possuía confortável residência de recreio.

O sul da Itália operava milagres e a amenidade do clima restauraria as forças da doentinha. As excursões pelas praias próximas e as visitas periódicas que poderiam efetuar à ilha de Cápri, ( † ) certo lhe renovariam as cores.


18 Deixariam a vila sob a responsabilidade de Teódulo, de vez que ele também seguiria o genro e a filha. Sentia-se entediado do turbilhão citadino. Tinha sede da Natureza… Entusiasmado, pediu que a viagem não sofresse delongas. Estava convicto de que a saúde da netinha reclamava providências imediatas.

Em razão disso, nada surgiu que adiasse a realização.

Garbosa galera em breve tempo conduzia a família para a estação indicada, na época um dos mais concorridos centros termais da Itália.

A viagem corria calma.


19 Taciano e a filhinha rejubilavam-se, por toda a parte, com os painéis sublimes da Natureza., mas Helena, invariavelmente pródiga em complicações e inutilidades, rodeava-se de todo um séquito de camareiras, costureiras, cantores e bailarinos que lhe afugentassem os ócios.

Asseverava que a beleza da costa neapolitana outra coisa não era senão enfadonha quietude e, forrando-se ao sacrifício para satisfazer os caprichos do pai e as necessidades da filha, projetava festividades e aventuras, com que se desvencilhasse do tempo.

Embalde Anacleta, agora de cabelos brancos e visivelmente fatigada, buscava induzi-la ao descanso. A matrona, cujos encantos juvenis foram sempre conservados com elixires e unguentos, gargalhava, zombeteira. Acreditava que os deuses mantinham, inalteráveis, a saúde e a alegria de quantos se dispusessem a cultivar o otimismo e a dominação.

A vida, — repetia, comumente, — era propriedade dos mais fortes. A felicidade consagrava aqueles que calcassem os fracos e os ignorantes sob os pés.


20 Os viajantes e a comitiva atingiram o golfo esplêndido, sem novidades dignas de menção.

O domicílio de Vetúrio, em Baias, ( † ) admiravelmente cuidado por mãos amigas, era um palacete em miniatura, que trepadeiras floridas ocultavam à frente do mar.

Ali a alma e o corpo obteriam surpreendentes recursos de recuperação. O espetáculo das águas azuis, asilando inúmeros barcos de pescadores em melodiosas cantilenas, que o vento sussurrante e doce espalhava pelas redondezas, era milagroso refrigério.

Enquanto Taciano providenciava o reajuste de duas pequenas e confortáveis embarcações para o contato mais íntimo com a Natureza, Helena determinava medidas para que as viaturas da residência fossem devidamente renovadas, a fim de entregar-se aos velhos hábitos de vida social intensiva.


21 Para o genro de Opílio e para Blandina transformaram-se as excursões numa cadeia de encantamentos. Na ilha de Cápri, ( † ) demoravam-se horas a fio, junto ao soberbo e impressionante Palácio de Tibério (Villa Jovis), ( † ) que o tempo estragava, impiedoso, multiplicando adoráveis passeios pelas grutas, pelos cimos de Anacápri ( † ) ou pelas outras belas vilas construídas ao tempo do famoso imperador.

Enlevados, visitaram todas as povoações que marginavam o golfo, conhecendo-lhes os costumes e associando-se-lhes à vida singela.

De outras vezes, contornando o cabo Miseno, ( † ) deambulavam pela costa, admirando os revérberos do sol poente no seio safirino das águas ou as cintilações prateadas do luar nas praias bafejadas pelas rendas ondulantes de espuma.


22 Certa feita, contrariados pelo vento forte, abordaram praia diferente.

O casario de Neápolis ( † ) erguia-se diante deles.

Embora o firmamento se mostrasse calmo e sem nuvens, Taciano julgou prudente desembarcar.

O crepúsculo não tardaria.

Ele e Blandina poderiam exercitar resistência em caminhada mais longa.

O servo que os acompanhava incumbiu-se de restituir a embarcação ao recanto que lhes era familiar, logo que a ventania amainasse, e, pai e filha, contentes, passaram a visitar empórios e praças, monumentos e jardins.

A satisfação a cada instante lhes retardava o passo.

Alugariam, por isso, um carro para a volta.


23 Parando aqui e acolá, quando o sol já havia mergulhado no poente, num dilúvio de raios de ouro, defrontaram-se com a padaria de Agripa.

O odor agradável que vinha do forno colhera-os na passagem, e, solicitado por Blandina, Taciano concordou em entrar no estabelecimento.

Guloseimas variadas enfileiravam-se à farta.

E, enquanto Agripa atendia, cortês, os dois excursionistas, estes ouviram uma doce voz de criança que, não longe, cortava o silêncio vespertino, cantando ao som de uma harpa irrepreensível:

Estrelas — ninhos da vida,
Entre os espaços profundos,
Novos lares, novos mundos,
Velados por tênue véu…
Louvores à vossa glória,
Nascida na eternidade,
Sois jardins da imensidade,
Suspensos no azul do céu.


Dizei-nos que tudo é belo,
Dizei-nos que tudo é santo,
Inda mesmo quando há pranto
No sonho que nos conduz.
Proclamai à terra estranha,
Dominada de tristeza,
Que em tudo reina a beleza
Vestida de amor e luz.


Quando a noite for mais fria
Pela dor que nos procura,
Rompei a cadeia escura
Que nos prenda o coração;
Acendendo a madrugada
No campo de Novo Dia,
Onde a ventura irradia
Eterna ressurreição.


Dai consolo ao peregrino
Que segue à mercê da sorte,
Sem teto, sem paz, sem norte,
Torturado, sofredor…
Templos do Sol Infinito,
Descerrai à Humanidade
A bênção da Divindade
Nas bênçãos do vosso amor.


Estrelas — ninhos da vida,
Entre os espaços profundos,
Novos lares, novos mundos,
Velados por tênue véu.
Louvores à vossa glória,
Nascida na eternidade,
Sois jardins da imensidade,
Suspensos no azul do céu.

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24 Taciano e a menina trocaram mudo olhar de intraduzível assombro.

O Hino sofrera modificações, mas era o mesmo…

Extáticos, recordaram o crepúsculo inolvidável sobre o Ródano, ( † ) quando penetraram a casa de Basílio pela primeira vez.

De quem é aquela voz?

Quando o cântico terminou, o patrício, muito pálido, dirigiu-se a Lúcio Agripa, interrogando:

— Amigo, por obséquio, podereis algo informar-me sobre a música que ouvimos em vossa propriedade?

O interpelado sorriu, bondoso, e esclareceu:

— Ilustre senhor, a voz é de um menino que canta para uma pobre mãe que agoniza.

— Quem é essa mulher? — Indagou Taciano, com ansiedade.

— É uma servidora cega que permanece em nossa casa, há três anos, e que, faz meses, acamou-se, absorvida pela peste de longa duração. Agora, está no fim…


25 De semblante marmóreo, o patrício tomou a pequena mão da filha e pediu acesso ao local em que a doente se demorava.

Ante aquele olhar suplicante e sincero, Agripa não vacilou.

Tomando a frente, guiou os visitantes, entre curtas aleias de arvoredo, até pequenino e arejado quarto nos fundos.

A janela aberta deixava escapar as notas harmoniosas de instrumento bem afinado.

Taciano atravessou a porta com o coração precípite…

Num quadro que jamais olvidaria, contemplou Lívia, semicadaverizada, a ouvir, ofegante, um menino simpático e humilde, que cantava com veludosa ternura.

— Lívia! — Gritou, atônito.

— Lívia! Lívia! — Repetiu Blandina, ardentemente.

A enferma esboçou inexprimível sorriso no semblante calmo e estendeu as mãos, murmurando entre lágrimas:

— Enfim!… enfim!…


26 O patrício fixou, consternado, os restos ainda vivos da mulher que ele amara e a cuja afeição se dedicara com fraternal ternura. Os olhos apagados imprimiam amarga vaguidade ao rosto triste, que mais se assemelhava, agora, a delicada máscara de marfim, emoldurada pelos bastos fios negros da cabeleira que não se modificara.

Enquanto Blandina se inclinava, carinhosa, para o leito, ele quis clamar a revolta que lhe lanceava o coração, mas pesada nuvem de dor constringia-lhe a garganta.

Lívia adivinhou-lhe a angústia e, tendo assinalado a presença de Agripa, ensaiou uma apresentação que pudesse aliviar a tensão do momento.

— Senhor Lúcio, — exclamou, — eis os amigos que esperei tanto tempo… Deus não permitiu que eu morresse sem abraçá-los pela última vez… Quinto Celso terá, doravante, nova família…


27 O dono da casa saudou Taciano e Blandina e, percebendo que o grupo desejava maior intimidade, retirou-se, cortês, prometendo regressar com Domícia, em breve tempo.

Foi então que o filho de Varro começou a gemer, estranhamente, como se trouxesse uma fera oculta no tórax a soltar medonhos rugidos… E porque Lívia o concitasse à conformação e à serenidade, explodiu em voz gritante e plangente:

— Por que reencontrar-te, assim, no terrível instante do adeus? Ai de mim!… Sou um réprobo sob a férrea mão dos gênios infernais! Sou como a tempestade que passa, uivando entre ruínas… Tudo me falhou. Por que me prendi, deste modo, aos deuses sinistros? Da felicidade só encontrei fumegantes restos… Tentei caminhar no mundo com o desassombro dos meus antepassados e agir sempre segundo o que as tradições me ensinaram de mais puro, mas todas as provações me aguardavam ludibriando os meus anseios… Sou um fantasma de mim mesmo! Desconheço-me!… A morte rondou-me todos os passos… Sou um vencido que a vida constrange a marchar entre os próprios ídolos quebrados!…


28 Interrompeu-se o genro de Vetúrio sufocado nas lágrimas copiosas que lhe corriam pela face.

Valendo-se do intervalo, a doente interferiu com inflexão comovedora:

— Taciano, porque alimentar a tormenta do coração, ante a serenidade da vida?… Queixas-te do mundo… Não seria, porém, mais acertado lamentar a nós mesmos?… Como te renderes à blasfêmia, se possuis um corpo robusto? Por que a revolta, quando as atividades de cada dia podem contar com os teus braços livres?… Aprendi com  Jesus que a luta é tão importante para a nossa alma, quanto o cinzel é precioso ao aperfeiçoamento da estátua!… Antigamente, nossos escrúpulos em família compeliam-nos a guardar a fé, a distância de nossas conversações mais íntimas… Meu pai recomendava-me não te ofender as convicções… Hoje, no entanto, não sou mais a mulher que o mundo poderia fazer feliz… Sou apenas a irmã que se despede… Alguns meses antes de nosso encontro às margens do Ródano, ( † ) encontráramos Jesus em Massília… ( † ) Nossa mente modificou-se… Com ele, aprendemos que o divino amor preside à vida humana… Somos simples forasteiros na Terra!… Nosso verdadeiro Lar brilha mais além… É necessário superar com valor os percalços da existência… Em verdade, estou cega e não ignoro que a morte se avizinha, entretanto, há uma luz a clarear-me por dentro do coração… Cristo…


29 O interlocutor, porém, cortou-lhe a frase hesitante e bradou:

— Sempre a sombra desse Cristo a atravessar-me a estrada… Jovem ainda, quando descobri o amor de meu pai foi para verificar-lhe a integral rendição ao profeta judeu! Quando busquei recuperar minha mãe para o equilíbrio da inteligência, ela não se reportava a outra pessoa e morreu suspirando pela influência desse intruso… Quando procurei por Basílio, ao voltar de Roma, lembrando-lhe a afeição que me impelia ao culto da memória paternal, o companheiro a quem amei tanto imolara-se por ele… Ponho-me ao teu encalço, gasto as minhas melhores forças na reivindicação de teu carinho, mas, em te revendo, observo-te igualmente nas mãos invisíveis desse estranho Salvador que não consigo compreender… Ó deuses infernais, que fizestes de mim?!…


30 Lívia fizera-se mais pálida.

Blandina tomou-lhe as mãos e ia dirigir-lhe a palavra, contudo, a enferma, com a serenidade de quem encontrara a paz, dentro de si mesma, reergueu a voz e falou, triste:

— É inútil a tua injustificável reação! Neste leito que me serve de cruz libertadora, tornei à convivência de muitas afeições que me precederam na morte!… Meus olhos de carne foram crestados para sempre, mas uma visão nova me enriquece a vida íntima… Vejo meu pai ao nosso lado… Abraça-me com o amor de todos os dias… E pede-te silêncio, diante das verdades que ainda não possas perceber… Afirma carinhosamente que aperfeiçoaste o cérebro na viagem dos séculos… entretanto, o teu coração, embora generoso, é uma pérola encarcerada numa caixa de bronze… O excesso de inteligência eclipsou-te a visão… Sofres, mas à maneira de um homem dementado, recusando o remédio libertador… As tuas lágrimas de rebelião espiritual acumulam densas nuvens de aflição sobre a tua própria cabeça!… Estás preso voluntariamente a ilusões que te ferem a alma… Meu pai roga-te calma e reflexão… Assevera que todos nos achamos encadeados, através de existências sucessivas… Somos verdugos e benfeitores uns dos outros… Somente as lições do Cristo bem vividas por nós conseguirão resgatar-nos, eliminando os elos escuros de ódio e vaidade, egoísmo e desesperação a que nos acorrentamos… Compadece-te de todos… dos superiores e dos inferiores, dos que te auxiliam e dos que te escarnecem, dos vivos e dos mortos… Não retribuas mal por mal… Perdoa sempre… Só assim farás luz em ti mesmo para que possas discernir a verdade… Meu pai anuncia-me a partida próxima… Demorava-me apenas à tua espera, a fim de transferir às tuas mãos o último dever que a Terra me reservou… Hoje, semelhante missão estará cumprida… sinto-me feliz com a graça de tua presença, junto de Blandina, ao meu lado… Agora, é o fim da tarefa…


31 Ante a pausa que se fizera natural, Quinto Celso, com os olhos arrasados de lágrimas, abandonou a harpa, esqueceu as visitas e abraçou-se à agonizante.

Aquelas frases de adeus traziam-lhe à memória o quadro final da mãezinha que se fora.

Amedrontado, começou a soluçar a sua dor.

Enquanto a enferma acalentava-o, com palavras de ternura, Taciano concluiu de si para consigo que Lívia talvez houvesse enlouquecido pelo sofrimento.

Não lhe competia armar, naquele instante, uma discussão religiosa que redundaria em prejuízo geral.

Qualquer altercação, acerca do Cristo, não restituiria a mínima parcela de equilíbrio orgânico à criatura amada que o destino estrangulara.

Reconheceu-se em erro.

Afagou-lhe a fronte inundada de pastoso suor e rogou-lhe perdão.


32 Lívia, sorridente, perguntou pelo progresso artístico de Blandina, pedindo a esta tocasse uma das velhas músicas da casinha de Lião.

A menina atendeu-a prontamente.

A melodia irradiou-se por abençoado calmante no quarto estreito.

Lágrimas tranquilas rolaram pelas faces macilentas da doente que, em seguida à música evocativa, tateou o rosto molhado de Celso, entregando-o ao amigo, com humildade e confiança:

— Taciano, este é o filho do meu coração que lego aos teus cuidados! Chama-se Quinto Celso… foi meu salvador na Trinácria…  †  Por lá cantamos juntos na via pública… É um bravo… Se a vida me houvesse confiado um filhinho, estimaria fosse assim como Celso, amigo, devotado, trabalhador… Estou certa de que será um filho valioso em teu caminho, tanto quanto será para Blandina um abnegado irmão…


33 O rapazinho olhou para Taciano de estranha maneira, e o patrício, magnetizado, esforçou-se por lembrar onde vira aqueles olhos no calidoscópio de suas recordações.

Não era aquele o olhar paterno que o fitava noutro tempo? De onde provinha aquela criança que, além de tudo, ainda trazia consigo o nome do apóstolo que lhe dera o ser?

O menino, a seu turno, qual se fora intimamente movido por automático impulso, desprendeu-se de Lívia e atirou-se-lhe aos braços.

Taciano, surpreendido, recebeu contente aquele gesto de espontânea ternura.

Celso afigurava-se-lhe um passarinho a esbarrar-lhe no peito. Chegava a escutar-lhe o coração, batendo assustadiço.

A criança, porém, não se contentara com o amplexo de amor. Beijou-lhe a cabeça, onde os fios grisalhos começavam a surgir e acariciou-lhe a fronte, alisando-lhe os cabelos.

O filho de Quinto Varro experimentou inexplicável emotividade constringindo-lhe as fibras mais íntimas. Tentou conversar com o menino, entretanto, não sabia senão afagá-lo sem palavras.


34 Foi então que Lívia, em frases entrecortadas, descreveu para Taciano e Blandina a luta que lhes desmoronara a paz doméstica. Helena nunca pudera recebê-los, em casa, apesar da insistência de Basílio, e a cobrança da dívida dos Carpos, através da família Vetúrio, desorientara-lhe o pai adotivo. Transferiram-se para a residência de Lucano Vestino, por imperiosa necessidade e, depois de relacionar os lances amargos das perseguições, reportou-se às dificuldades do cárcere, à repentina cegueira, e, por último, à fuga, seguida da viagem para a Sicília, em companhia de Teódulo, cujas promessas não se haviam cumprido.

O amigo escutou-a com indizível espanto e revolta.

Os dolorosos sofrimentos da moça em Lião e na Trinácria dilaceravam-lhe o cerne da alma.

Vislumbrou a escura trama em que se lhe erigia o sacrifício.


35 Afirmou-lhe ignorar o que se passara.

Nunca estivera na ilha. Efetuara regular viagem a Roma, consoante o programa estabelecido, e voltara sem alteração.

Helena, contudo, devia conhecer os acontecimentos.

Mandaria buscá-la.

Extremamente perturbado, veio à rua e, embora a noite houvesse caído integralmente, expediu um portador à vila distante, rogando à esposa e à governanta viessem ter com ele e Blandina, em casa de Agripa, alegando urgentes motivos de saúde.

Exigiria o pronunciamento da mulher, à frente da pobre criatura que jazia semimorta.


36 Transcorrido algum tempo, Helena e Anacleta chegavam em carro ligeiro e garrido.

Recebidas por Taciano, este falou, nervosamente, depois das perguntas que lhe foram desfechadas:

— Entremos! É um caso de morte próxima.

— Blandina? — Interrogou a matrona, aflita.

— Não, não. Sigamos!

A breves instantes, o grupo ingressava no estreito recinto.


37 Taciano indicou a agonizante, cujos olhos mortos vagueavam sem expressão dentro das órbitas, e interpelou-a, emocionado:

— Helena, reconheces a enferma?

A senhora estremeceu e, porque esboçasse um gesto silencioso de negativa, o marido acentuou:

— Esta é Lívia, a infortunada filha de Basílio.

Nesse instante, Lúcio Agripa e a mulher, que se mantinham atenciosos e desvelados no quarto, demandaram o interior doméstico, recolhendo as crianças para o necessário repouso.


38 Somente aquelas quatro almas, presas ao tremendo destino que lhes era comum, permaneceram, frente a frente, como se estivessem convocadas por forças invisíveis a supremas decisões.

Helena e Anacleta pareciam galvanizadas na contemplação daquele semblante animado por intensa vida interior.

A harpista cega, nas vizinhanças da morte, mostrava as linhas fisionômicas de Emiliano Secundino, o amor que o tempo não apagara no coração da filha de Vetúrio.

— Lívia, — falou Taciano, compadecidamente, — apresento-te minha esposa e nossa amiga Anacleta.


39 O rosto da infeliz iluminou-se de profunda alegria.

— Agradeço a Deus esta hora… — exclamou em voz ciciante, com humildade, — eu sempre desejei pedir às senhoras me desculpassem a má impressão que lhes causava… Muitas vezes… desejei aproximar-me para dizer-lhes do meu respeito e amizade… entretanto… as circunstâncias não me favoreceram…

Aquela voz ecoava no espírito de Helena com estranha ressonância… Porque não se interessara por um conhecimento mais íntimo daquela mulher?

Alterou-se-lhe inexplicavelmente o modo de ser… Reminiscências de obscura quadra de sua vida emergiam-lhe, em cores vivas, dos recônditos da memória. Teve a impressão de que Emiliano ali se achava, em Espírito, acordando-a para a realidade terrível… Olvidou a presença de Taciano, despreocupou-se de qualquer conveniência de ordem pessoal e, de fisionomia ansiada, perguntou:

— Onde nasceste?

— Em Cipro, ( † ) senhora.

— Quem te foi mãe no mundo?


40 A agonizante sorriu com esforço e esclareceu:

— Não tive a felicidade de conhecer minha mãe… Fui recolhida por meu velho pai adotivo numa charneca…

— E desculparias aquela que te deu a vida se algum dia a encontrasses?

— Como não?… Sempre rendi carinhoso culto ao coração materno… em minhas preces de cada dia…

A matrona, pálida, trêmula de terror, perante a face nua da verdade, continuou indagando:

— E se tua mãe te roubasse o esposo, o pai e a própria saúde, impondo-te o escárnio público?

— Ainda assim… — confirmou Lívia, sem vacilar — não seria para mim diferente… Quem de nós, neste mundo, poderá julgar com segurança?… Minha mãe… embora me quisesse com todo o amor… talvez fosse obrigada a ferir-me… em meu próprio bem… Creio que… em tudo… devemos render graças a Deus…


41 Ante a espantada mudez de Helena, Anacleta avançou para a agonizante com fervoroso interesse.

— A genitora não te deixou qualquer recordação? — Inquiriu a governanta com ansiosa expectativa.

Lívia refletiu alguns momentos, como quem buscava forças para conversar, e falou, confirmando:

— Penso que minha mãe… tinha a intenção de encontrar-me… porque me deixou nas rendas do berço um camafeu que meu pai me ensinou a trazer sobre o coração…

Anacleta, à frente de Taciano estupefato, revistou-lhe o tórax e tirou-lhe a joia de marfim, em que brilhava a imagem de Cíbele primorosamente insculpida; e da qual Helena jamais se separava nos passeios com Secundino.


42 Na filha de Vetúrio mais se acentuara a palidez.

Descobrira a própria filha, sobre quem fizera pesar a clava de sua frenética perseguição. Aquela era a flor ressequida dos seus primeiros sonhos… Ouviu, de novo, na milagrosa acústica da memória, as palavras que o homem inolvidável de seus ideais femininos lhe falara pela primeira vez… Haviam, ele e ela, projetado para o rebento de suas esperanças o mais belo destino.

Porque se tinha metamorfoseado em inferno o paraíso imaginado?

Imobilizada pelo pavor, olhos estatelados, notou que as reminiscências lhe materializavam o pretérito no âmago da própria alma.

As paredes do quarto desapareceram aos seus olhos.

Viu-se novamente menina, no turbilhão de banalidades em que o amor de Emiliano lhe despertara o coração…


43 Obscurecera-se-lhe o cérebro.

Onde estava?

Reparou que, em meio das sombras que a cercavam, um homem caminhava ao seu encontro… Era ele, Secundino, como na antiga visão de Orósio e como no sonho que a visitara na ilha de Cipro, envolvido ainda nas suas vestes militares e com a destra sobre o peito ensanguentado, a chamá-la, gritante:

— Helena! Helena!… Que fizeste da filha que te dei?

Torturavam-lhe a alma estas palavras, infinitamente repetidas pelos monstros do remorso em profundo abismo a escancarar-se sob os seus pés…

Lembrou que a filha abandonada ali se encontrava ao alcance de suas mãos, entretanto, por mais estendesse os braços, não conseguia encontrá-la nas trevas a se adensarem ao redor…

Somente o rosto de Emiliano crescia, descomunal, ante a sua visão espavorida e só a inquietante interrogação dele lhe alcançava os ouvidos:

— Helena! Helena!… Que fizeste da filha que te dei?


44 Diante de Taciano e Anacleta, fulminados de assombro, a matrona, com o esgazeado olhar dos loucos, desferiu horrível gargalhada, rodou sobre os calcanhares e correu para a via pública. Tomou as rédeas do veículo que a trouxera e partiu, em disparada, de regresso à vila distante…

O marido de Helena solicitou a assistência de Agripa, em favor da enferma, e isolando-se com a governanta, num trecho do jardim, dela ouviu, por mais de duas horas, sombrias confidências, em torno do passado e do presente.

Taciano, transtornado, parecia ébrio de ira.

Quando Anacleta terminou as amargas revelações, o interlocutor, compenetrado assim de toda a cruel verdade, cerrou os punhos e bradou em voz estentórica:

— Helena é indigna de respirar entre os mortais. Será estrangulada por minhas próprias mãos… Descerá, ainda hoje, para as horrendas regiões tartáreas, onde curtirá bem merecidas penas!…

— Taciano! Taciano! — Soluçava a velha amiga, entravando-lhe os movimentos, — espera! espera! o tempo ajuda a reflexão!…


45 O patrício procurava desvencilhar-se, quando Lúcio Agripa, com expressão fatigada, abeirou-se deles e notificou:

— Meus amigos, nossa doente descansou por fim.

Alanceado duplamente no coração, o pai de Blandina correu ao quarto simples e contemplou o rosto de Lívia, macerado e lívido, sob o halo da morte.

Angelical serenidade estampara-se na face dela. Um sorriso misterioso, que ninguém saberia definir como sendo de alegria ou de conformação, fixara-se-lhe nos lábios por derradeira mensagem de sua vida curta aos que ficavam.

O companheiro que tanto a amara inclinou-se sobre o cadáver, pranteando por alguns momentos no entanto, como se fosse subitamente erguido por força estranha, começou a bramir de dor selvagem e a imprecar.


46 Convenientemente amparado por Lúcio, a este rogou auxílio. Precisava de urgente acesso ao lar.

Em minutos breves, uma carreta de serviço transportava-o, de retorno a casa, em companhia de Anacleta.

Em todo o percurso não haviam trocado palavra.

Clarões matutinos principiavam a surgir em formoso dilúculo…

Seguido pela governanta, preocupada em evitar qualquer atitude de violência, o patrício chamou pela mulher com a voz clamante de um alienado mental.

Helena, porém, não se achava como de costume em sua câmara de repouso.

Após alguns instantes de ansiosa busca, foi afinal surpreendida numa poça de sangue, nos banhos da casa.


47 A desventurada matrona, transtornada pelos quadros terrificantes da culposa consciência, abrira os pulsos com as próprias mãos.

Anacleta prorrompeu em ruidosas exclamações.

Todos os servos acorreram pressurosos para o socorro que não mais tinha razão de ser.

Foi então que o velho Opílio, trêmulo e aflito, aproximou-se e, deparando com a filha que sempre lhe dominara o coração, cadaverizada, quis gritar mas não conseguiu. O peito afigurou-se-lhe comprimido e o cérebro estalou, à maneira de uma harpa cujas cordas se rebentassem, e o ancião caiu desamparado, no piso de mármore, gemendo angustiosamente.


48 A noite trágica passou qual furacão desapiedado e ululante.

Opílio Vetúrio, o potentado que Roma admirara por tantos anos, em razão do choque, acamara-se abatido e hemiplégico.

Extinguira-se-lhe o dom da palavra.

Não obstante o imenso esforço para recuperá-lo, não conseguia senão emitir sons guturais, com simiesca expressão.

Dias desdobraram-se sobre dias…

E, enquanto uma soberba trirreme o conduzia, sob os cuidados de Anacleta, a caminho de Óstia, ( † ) Taciano e Blandina, acompanhados de Quinto Celso, regressavam à Gália Lugdunense, ( † ) chagados de saudade e de dor…

O orgulhoso filho de Quinto Varro, que desde a juventude desdenhava a plebe e que apenas se humilhava superficialmente no culto aos deuses das vitórias imperiais, começava a dobrar a cabeça. Abraçado às duas crianças que lhe constituiriam doravante a razão de viver, com rugas profundas a lhe desfigurarem o rosto, emoldurado já nos cabelos brancos a se multiplicarem celeremente, não sabia agora senão inquirir em silêncio o horizonte distante, demorando-se, mudo, a refletir e chorar…


Emmanuel



[1] Hoje, Baia. ( † ) — (Nota do Autor espiritual.)


Texto extraído da 1ª edição desse livro.

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