O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

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Revista espírita — Ano IV — Março de 1861.

(Idioma francês)

O homenzinho ainda vive.

A Propósito do Artigo do Sr. Deschanel, Publicado no Journal des Débats.
(Sumário)

1. — O Sr. Émile Deschanel, cujo nome não nos era conhecido, houve por bem consagrar-nos vinte e quatro colunas do folhetim do Journal des Débats, nos números de 15 e 29 de novembro último. Nós lhe agradecemos o fato, mas não a intenção. Com efeito, depois do artigo da Bibliographie catholique e o da Gazette de Lyon, que lançavam anátema e injúria à boca cheia, de maneira a fazer crer num retorno ao século XV, nada conhecemos de mais malévolo, de menos científico, sobretudo de mais longo, que o do Sr. Deschanel. Uma tão vigorosa investida deve ter-lhe feito pensar que o Espiritismo, por ele ferido a torto e a direito, deveria estar para sempre bem morto e enterrado. Como não lhe havíamos respondido, não lhe fizemos nenhuma intimação, não iniciamos com ele nenhuma polêmica extrema, pode ter-se equivocado quanto à causa do nosso silêncio. Devemos expor os motivos. O primeiro é que, em nossa opinião, nada havia de urgente e estávamos muito à vontade para esperar, a fim de julgar o efeito desse assalto e regular nossa resposta. Hoje, que estamos completamente informados a respeito, diremos algumas palavras.

O segundo motivo é consequência do precedente. Para refutar o artigo detalhadamente, teria sido preciso reproduzi-lo por inteiro, a fim de pôr à vista o ataque e a defesa, o que já teria absorvido um número da nossa Revista; só a refutação absorveria pelo menos dois números; teríamos, assim, três números empregados em refutar o quê? Razões? Não, apenas pilhérias do Sr. Deschanel. Francamente, não valia a pena e nossos leitores preferem outra coisa. Os que desejarem conhecer a sua lógica poderão contentar-se lendo os números citados. E, depois, nossa resposta não teria sido mais que a repetição do que escrevemos, do que já respondemos ao jornal Univers, ao Sr. Oscar Comettant, à Gazette de Lyon, ao Sr. Louis Figuier e à Bibliographie catholiquen porque todos esses ataques não passam de variantes de um mesmo tema. Teria sido preciso, então, repetir a mesma coisa em outros termos para não ser monótono, e não teríamos tempo para isso. O que poderíamos dizer seria inútil para os adeptos e não seria bastante completo para convencer os incrédulos; portanto, trabalho perdido. Preferimos remeter às nossas obras os que queiram realmente esclarecer-se; eles poderão comparar os argumentos a favor e contrários: sua própria razão fará o resto.

Aliás, por que responderíamos ao Sr. Deschanel? Para convencê-lo? Mas isto não nos interessa absolutamente. Dir-se-á que seria um adepto a mais. Mas, o que nos importa a pessoa do Sr. Deschanel, a mais ou a menos? Que peso pode ter na balança, quando as adesões chegam aos milhares, desde o alto da escala social? — Mas é um publicista e se, em lugar de fazer uma diatribe tivesse feito um elogio, não teria sido muito melhor para a doutrina? Esta é uma questão mais grave; vamos examiná-la.

Antes de mais, quem garantiria que o recém-convertido Sr. Deschanel teria publicado vinte e quatro colunas em favor do Espiritismo, como as publicou contra? Não o cremos, por duas razões: a primeira, porque teria temido ser levado ao ridículo por seus confrades; a segunda, porque o diretor do jornal provavelmente não as teria aceitado, com medo de intimidar certos leitores menos apavorados com o diabo do que com os Espíritos. Conhecemos bom número de literatos e de publicistas que estão nesse caso e nem por isso são bons e sinceros espíritas. Sabe-se que a Sra. Emile de Girardin, que passa por ter tido alguma inteligência em vida, não só era muito crente, mas ainda muito boa médium e obteve inúmeras comunicações; mas ela as reservava para o círculo íntimo de seus amigos, que partilhavam suas convicções; aos outros não falava disto. Para nós, pois, um publicista que ousa bem falar contra, mas que não ousaria falar a favor, se estivesse convencido, não passa de simples indivíduo. E quando vemos uma mãe desolada pela perda de um filho querido encontrar inefáveis consolações na doutrina, sua adesão aos nossos princípios tem para nós cem vezes o preço da conversão de um ilustre qualquer, se esse ilustre nada ousa dizer. Aliás, os homens de boa vontade não faltam; são em grande quantidade e tantos vêm a nós, que apenas podemos lhes responder. Assim, não vemos por que perder o nosso tempo com os indiferentes e correr atrás dos que não nos procuram.

Uma só palavra dará a conhecer se o Sr. Deschanel é um homem sério. Eis o início de seu segundo artigo, publicado em 29 de novembro:


“A Doutrina Espírita refuta-se por si mesma: basta expô-la. Depois de tudo ela não está errada por se chamar simplesmente espírita, porquanto nem é espírita nem espiritualista. Ao contrário, baseia-se no mais grosseiro materialismo e só não é divertida porque é ridícula”.


Dizer que o Espiritismo é baseado num materialismo grosseiro, quando combate este sem tréguas, quando nada seria sem a alma, sua imortalidade, as penas e as recompensas futuras, das quais é a demonstração patente, é o cúmulo da ignorância daquilo de que se trata. Se não é ignorância é má-fé e calúnia. Vendo essa acusação e ouvindo-o citar os textos bíblicos, os profetas, a lei de Moisés, que proíbe interrogar os mortos  ( † ) — prova de que podem ser interrogados, pois não se proíbe uma coisa impossível — poderíamos acreditá-lo de uma ortodoxia furibunda, mas lendo a facciosa passagem de seu artigo, que vamos transcrever, os leitores ficarão muito embaraçados para se pronunciarem a respeito de suas opiniões:


2. — “Como podem os Espíritos tornar-se patentes? Como podem ser vistos, ouvidos e apalpados? E como podem escrever eles próprios e nos deixar autógrafos do outro mundo? — “Oh! mas é que esses Espíritos não são Espíritos, como podeis crer; Espíritos puramente Espíritos. “O Espírito — ouvi bem isso — não é um ser abstrato, indefinido, que só o pensamento pode conceber; é um ser real, circunscrito, que, em certo caso, é apreciável pelos sentidos da visão, da audição e do tato.”

— “Mas, então, esses Espíritos têm corpos?

— “Não exatamente.

— “Mas, então?…

— “Há no homem três coisas:

“1º O corpo, ou ser material, análogo aos animais movido pelo mesmo princípio vital;

“2º A alma, ou ser imaterial, Espírito encarnado no corpo;

“3º O laço que une a alma e o corpo, princípio intermediário entre a matéria e o Espírito.”

— “Intermediário? Que diabo quereis dizer? Ou se é matéria ou não se é.

— “Isto depende.

— “Como! isto depende!

— “Eis a coisa: o laço ou perispírito, que une o corpo e o Espírito, é uma espécie de envoltório semimaterial…”

— “Semi! semi!

— “A morte é a destruição do envoltório mais grosseiro; o Espírito conserva o segundo, que constitui para ele um corpo etéreo, invisível para nós no estado normal, mas que acidentalmente pode torná-lo visível e mesmo tangível, como acontece no fenômeno das aparições.”

— “Etéreo, tanto faz; um corpo é um corpo. Isto significa dois. E a matéria é a matéria. Sutilizai-a tanto quanto o quiserdes, e lá dentro não há semi nenhum. A própria eletricidade não passa de matéria, e não semimatéria. E quanto ao vosso… Como chamais isto?

— “O perispírito?

— “Sim, vosso perispírito… eu acho que ele nada explica e que ele mesmo necessita de uma boa explicação.

— “O perispírito serve de primeiro envoltório ao Espírito e une a alma ao corpo. Tais são, num fruto, o germe, o perisperma e a casca… O perispírito é tirado do meio ambiente, do fluido universal; participa, ao mesmo tempo, da eletricidade, do fluido magnético e, até certo ponto, da matéria inerte… Compreendeis?

— “Não muito.

— “Poder-se-ia dizer que é a quintessência da matéria.

— “Por mais quintessencieis, daí não tirareis Espírito, nem semiespírito; vosso perispírito é pura matéria.

— “É o princípio da vida orgânica, mas não o da vida intelectual.

— “Enfim, é o que quiserdes; mas vosso perispírito é tanta coisa, que não sei bem o que ele seja; poderá muito bem nada ser”.


3. — Ao que parece, a palavra perispírito vos ofusca. Se tivésseis vivido ao tempo em que foi inventada a palavra perisperma, provavelmente também o tivésseis achado ridículo. Por que não criticais os que são inventados diariamente para exprimir ideias novas? Não é a palavra que critico, direis vós, é a coisa. Seja, por que jamais o vistes; mas negais a alma, que também nunca vistes? Negais a Deus, que igualmente jamais vistes? E então? se não se pode ver a alma ou o Espírito, que é a mesma coisa, pode-se ver o seu envoltório fluídico ou perispírito, quando está livre, como se vê o seu envoltório carnal quando ela está encarnada.

O Sr. Deschanel esforça-se por provar que o perispírito deve ser matéria; mas é o que dizemos com todas as letras. Por acaso seria isto que o faz dizer que o Espiritismo é uma doutrina materialista? Mas a própria citação que ele faz o condena, pois dizemos em termos apropriados, sem as suas facécias espirituosas, que o perispírito não passa de um envoltório independente do Espírito. Onde nos ouviu dizer que é o perispírito que pensa? Vá lá que ele não queira o perispírito; mas que nos diga como explica a ação do Espírito sobre a matéria sem intermediário? Não falaremos das aparições contemporâneas, nas quais por certo não acredita; mas já que é tão aferrado à Bíblia, cuja defesa faz com tanto fervor, é que crê na Bíblia e no que ela diz. Que, então, nos explique as aparições dos anjos, dos quais ela faz menção a todo instante. Segundo a doutrina teológica, os anjos são Espíritos puros; mas quando se tornam visíveis, dir-se-á que é o Espírito que, se mostra? Então seria, desta vez, materializar o próprio Espírito, porquanto só a matéria pode afetar os nossos sentidos. Dizemos que o Espírito é revestido por um envoltório, que ele pode tornar visível e mesmo tangível à vontade. Só o envoltório é material, embora muito etéreo, o que nada tira às qualidades particulares do Espírito. Assim explicamos um fato até então inexplicado e, por certo, somos menos materialistas do que aqueles que pretendem ser o próprio Espírito que se transforma em matéria para se fazer ver e agir. Os que não acreditavam na aparição dos anjos da Bíblia podem agora acreditar, se acreditam na existência dos anjos, sem que isso lhes repugne a razão. Por isso mesmo podem compreender a possibilidade das manifestações atuais, visíveis, tangíveis e outras, desde que a alma ou Espírito possui um envoltório fluídico, se é que acreditam na existência da alma.

Aliás, o Sr. Deschanel esqueceu uma coisa: expor a sua teoria da alma ou Espírito. Como homem judicioso deveria ter dito: Estais equivocado por esta ou aquela razão; as coisas não são tais quais dizeis; eis o que são. Só então teríamos algo sobre o que discutir. Mas é de notar que isto ainda não fez nenhum dos contraditores do Espiritismo: apenas negam, zombam ou injuriam. Não lhes conhecemos outra lógica, o que é muito pouco inquietante. Assim, absolutamente não nos preocupamos, porquanto, se nada propõem, é que aparentemente nada têm de melhor a propor. Só os sinceros materialistas têm um sistema definitivo: o nada após a morte. Desejamos que se divirtam muito, se isto os satisfaz. Infelizmente os que admitem a alma estão impossibilitados de resolver as mais vitais questões, apenas conforme sua teoria. É por isso que não têm outro recurso senão recorrer à fé cega, razão pouco concludente para os que gostam das razões, sendo grande o seu número neste século de luzes. Ora, os espiritualistas nada explicam de modo satisfatório para os pensadores, o que leva estes a concluir que nada existe e que os materialistas talvez tenham razão. É isto que conduz tanta gente à incredulidade, ao passo que essas mesmas dificuldades encontram solução muito simples e natural pela teoria espírita. O materialismo diz: “Nada há fora da matéria”. O espiritualismo diz: “Existe algo”, mas não o prova. O Espiritismo diz: “Existe alguma coisa”, e o prova; e, auxiliado por sua alavanca, explica o que até então era inexplicável. É o que faz que o Espiritismo reconduza tantos incrédulos ao espiritualismo. Não pedimos ao Sr. Deschanel senão uma coisa: expor claramente a sua teoria e responder, não menos claramente, às diversas perguntas que dirigimos ao Sr. Figuier.

Em suma, as objeções do Sr. Deschanel são pueris. Se fosse um homem sério; se tivesse criticado com conhecimento de causa e não se houvesse exposto ao pesado equívoco de tachar o Espiritismo de doutrina materialista, por certo teria procurado aprofundar o assunto. Teria vindo nos encontrar, como tantos outros, pedir esclarecimentos que com prazer lhe daríamos; mas preferiu falar conforme suas próprias ideias, que sem dúvida encara como o supremo regulador, como a unidade métrica da razão humana. Ora, como sua opinião pessoal nos é indiferente, não nos preocupamos absolutamente em mudá-la, razão por que não demos um só passo nessa direção, nem o convidamos a nenhuma reunião, como a nenhuma demonstração. Se ele quisesse saber, teria vindo. Como não veio é porque não o queria, e não seríamos nós a querer mais do que ele.

Outro ponto a examinar é este: Uma crítica tão virulenta e tão longa, fundamentada ou não, num jornal tão importante quanto o Débats, não poderia prejudicar a propagação das ideias novas? Vejamos.

Antes de mais, é preciso observar que não se cuida de uma doutrina filosófica como de uma mercadoria. Se, apoiado em provas, um jornal afirmasse que tal comerciante vende mercadorias avariadas ou adulteradas, ninguém seria tentado a ir experimentar se aquilo era verdade. Mas toda teoria metafísica é uma opinião que, fosse ela do próprio Deus, encontraria contraditores. Não vimos as melhores coisas, as mais incontestáveis verdades de hoje serem postas ao ridículo quando de seu aparecimento pelos homens mais capazes? Isso as impediu de serem verdadeiras e de se propagarem? Todo mundo o sabe. Eis por que a opinião de um jornalista sobre questões desse gênero é apenas e sempre uma opinião pessoal; e se tantos sábios se enganaram sobre coisas positivas, o Sr. Deschanel pode muito bem equivocar-se sobre uma coisa abstrata. Por pouco que ele tenha uma ideia, mesmo vaga, do Espiritismo sua acusação de materialismo é a sua própria condenação. Disso resulta que se quer ver e julgar por si mesmo: é tudo o que pedimos. Sob esse aspecto, mesmo sem o querer o Sr. Deschanel prestou um verdadeiro serviço à nossa causa, pelo que lhe agradecemos, pois ele nos poupa despesas de publicidade; afinal, não somos ricos o suficiente para pagar um folhetim de 24 colunas. Por mais espalhado que esteja, o Espiritismo ainda não penetrou em toda parte; há muita gente que dele jamais ouviu falar. Um artigo de tal importância atrai a atenção, faz penetrar até mesmo no campo inimigo, onde causa deserções, porque se diz naturalmente que não se ataca assim uma coisa sem valor. Com efeito, a gente não se diverte apontando baterias formidáveis contra uma praça que se pode tomar a fuzil. Julga-se a resistência pela exibição das forças de ataque, e é o que desperta a atenção sobre coisas que talvez pudessem passar despercebidas.

Isto não passa de raciocínio. Vejamos se os fatos o vêm contradizer. Julga-se do crédito de um jornal, das simpatias que encontra na opinião pública, pelo número de seus leitores. O mesmo deve dar-se com o Espiritismo, representado por algumas obras especiais. Só falaremos das nossas, porque lhes conhecemos o número exato. Pois bem! O Livro dos Espíritos, que passa por conter a mais completa exposição da doutrina, foi publicado em 1857; a 2ª edição em abril de 1860; a 3ª em agosto de 1860, isto é, quatro meses mais tarde; e em fevereiro de 1861 a 4ª edição estava à venda. Assim, três edições em menos de um ano, provando que nem todo mundo é da opinião do Sr. Deschanel. Nossa nova obra, O Livro dos Médiuns, apareceu a 15 de janeiro de 1861 e já é preciso pensar em preparar uma nova edição. Foi pedido da Rússia, da Alemanha, da Itália, da Inglaterra, da Espanha, dos Estados Unidos, do México, do Brasil, etc.

Os artigos do Journal des Débats apareceram em novembro último. Se tivessem exercido alguma influência sobre a opinião pública, teria sido precisamente sobre a Revista Espírita, que publicamos, que tal influência teria feito sentir-se. Ora, a 1º de janeiro de 1861, data da renovação das assinaturas anuais, havia um terço a mais de assinantes em relação à mesma época do ano precedente, e diariamente recebe novos que — coisa digna de nota — pedem todas as coleções dos anos anteriores, de modo que foi necessário reimprimi-las. Isto prova, portanto, que ela não parece assim tão ridícula. De todos os lados, em Paris, na província, no estrangeiro, formam-se reuniões espíritas. Conhecemos mais de cem delas nos Departamentos e estamos longe de as conhecer totalmente, sem contar todas as pessoas que disso se ocupam isoladamente ou no seio da família. Que dirão a isto os Srs. Deschanel, Figuier e gente da espécie? Que o número de loucos aumenta. Sim, aumenta de tal forma que em pouco tempo os loucos serão mais numerosos que as pessoas sensatas. Mas o que tais senhores, tão cheios de solicitude pelo bom-senso humano, devem deplorar, é ver que tudo quanto fizeram para deter o movimento produz resultado exatamente contrário. Querem saber a causa? É muito simples. Eles pretendem falar em nome da razão, e nada oferecem de melhor; uns dão como perspectiva o nada; outros, as chamas eternas: duas alternativas que agradam a muito pouca gente. Entre as duas escolhe-se a que é mais tranquilizadora.

Depois disso, senhores, ainda vos admirais de ver os homens se lançarem nos braços do Espiritismo? Acreditáveis matá-lo e nós tivemos de lhes provar que o homenzinho ainda vive e viverá por muito tempo.

Tendo demonstrado a experiência que os artigos do Sr. Deschanel, longe de prejudicar a causa do Espiritismo, a serviram, ao excitar nos que dele ainda não haviam ouvido falar o desejo de o conhecer, julgamos supérfluo discutir cada uma de suas asserções. Todas as armas têm sido empregadas contra esta doutrina: atacaram-na em nome da religião, a que ela serve em vez de prejudicar; em nome da Ciência, em nome do materialismo; prodigalizaram-lhe, sucessivamente, a injúria, a ameaça, a calúnia, e ela a tudo resistiu, mesmo ao ridículo. Sob a nuvem das setas que lhe atiram, ela dá pacificamente a volta ao mundo e se implanta por toda parte, às barbas de seus inimigos mais encarniçados. Não está nisto matéria para séria reflexão e não é prova de que encontra eco no coração do homem, ao mesmo tempo em que se acha sob a salvaguarda de uma força contra a qual vêm aniquilar-se os esforços humanos?

É notável que no momento em que apareceram os artigos do Journal des Débats, comunicações espontâneas tenham ocorrido em vários lugares, tanto em Paris quanto nos Departamentos. Todas exprimem o mesmo pensamento. A seguinte foi dada na Sociedade, a 30 de novembro último:


4. — “Não vos inquieteis com o que o mundo pode escrever contra o Espiritismo. Não é a vós que atacam os incrédulos, mas ao próprio Deus; mas Deus é mais poderoso do que eles. É uma era nova, entendei bem, que se abre ante vós; e os que buscam opor-se aos desígnios da Providência logo serão derrubados. Como foi dito perfeitamente, longe de prejudicar o Espiritismo, o cepticismo fere a própria mão e ele mesmo se matará. Já que o mundo quer tornar a morte onipotente pelo nada, deixai-o falar; não lhe oponhais senão a indiferença ao seu amargo pedantismo. Para vós a morte não será mais essa deusa atroz que os poetas sonharam: a morte se vos apresentará como a aurora dos dedos de rosa de Homero”.

André Chénier. n


Sobre o mesmo assunto São Luís havia dito antes:

“Semelhantes artigos só fazem mal aos que os escrevem; nenhum mal fazem ao Espiritismo, concorrendo para o espalhar mesmo entre os seus inimigos”.

Um outro Espírito respondeu a um médico de Nimes,  †  que lhe perguntou o que pensava dos artigos:

“Deveis ficar satisfeitos com isto. Se vossos inimigos se ocupam tanto convosco, é porque vos reconhecem algum valor e vos temem. Deixai-os, pois, que digam e façam o que quiserem; quanto mais falarem, mais vos farão conhecer, e não vem longe o tempo em que serão forçados a calar-se. Sua cólera prova a sua fraqueza. Só a verdadeira força sabe dominar-se: tem a calma da confiança. A fraqueza procura perturbar fazendo muito barulho”.

Querem agora uma amostra do emprego que certos sábios fazem da ciência em proveito do Espiritismo? Citemos um exemplo.

Um dos nossos colegas da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, o Sr. Indermuhle, de Berna,  †  escreve-nos o seguinte:

“O Sr. Schiff,  †  professor de Anatomia (não sei se é o mesmo que tão engenhosamente descobriu o músculo estalante, do qual o Sr. Jobert de Lamballe  †  tornou-se o editor responsável), n deu aqui há algumas semanas um curso público sobre digestão.

Certamente o curso era interessante; porém, depois de haver falado muito sobre a cozinha e a Química, a propósito dos alimentos, e provado que nenhuma matéria se aniquila; que pode dividir-se e transformar-se, mas que é encontrada na composição do ar, da água e dos tecidos orgânicos, chegou à seguinte conclusão: “Assim, pois — diz ele — a alma, tal como o vulgo a entende, é justamente no sentido de que aquilo que chamamos alma se dissolve após a morte do corpo, assim como o corpo material. Ela se decompõe para que se juntem novamente as matérias nela contidas, seja no ar, seja nos outros corpos. É somente neste sentido que a palavra imortalidade se justifica: do contrário, não”.

É assim que, em 1861, encarregados de instruir e de esclarecer os homens, os sábios lhes oferecem pedra em vez de pão. É preciso que se diga, em louvor da Humanidade, que a maioria dos ouvintes estava muito pouco edificada e satisfeita com esta conclusão, tirada tão bruscamente; que muitos ficaram escandalizados. Quanto a mim, tive piedade desse homem. Se tivesse atacado o governo, tê-lo-iam interditado e mesmo punido. Como se pode tolerar o ensino público do materialismo, essa subversão da sociedade?”

A essas judiciosas reflexões de nosso colega, acrescentaremos que uma sociedade materialista, tal qual certos homens se esforçam em transformar a sociedade atual, não possuindo nenhum freio moral, é a mais perigosa para qualquer espécie de governo. Talvez o materialismo jamais tenha sido professado com tanto cinismo. Aqueles que são retidos por um pouco de pudor se compensam arrastando na lama o que o pode destruir. Mas, por mais que façam, são as convulsões de sua agonia. E, diga o que disser o Sr. Deschanel, é o Espiritismo que lhe dará o golpe de misericórdia.


5. — Limitamo-nos a enviar a seguinte carta ao Sr. Deschanel:


Senhor,

Publicastes dois artigos no Journal des Débats de 15 e 29 de novembro último, nos quais apreciais o Espiritismo, do vosso ponto de vista. O ridículo que lançais sobre esta doutrina e, consequentemente, sobre mim e sobre todos que a professam, autorizava-me a dirigir uma refutação, que eu pediria fosse inserta naquele jornal. Não o fiz porque, por maior extensão que lhe desse, sempre teria sido insuficiente para as pessoas estranhas a essa ciência e inútil aos que a conhecem. A convicção não é adquirida senão por estudos sérios, feitos sem prevenção, sem ideias preconcebidas e por numerosas observações, feitas com a paciência e perseverança de quem quer realmente saber e compreender. Eu precisaria ter dado aos vossos leitores um verdadeiro curso, que teria ultrapassado os limites de um artigo. Mas como vos creio um homem muito honrado para atacar sem admitir defesa, limitar-me-ei a lhes dizer, nesta simples carta, que vos rogo a gentileza de publicar no mesmo jornal, que eles encontrarão em O Livro dos Espíritos ou em O Livro dos Médiuns, que acabo de publicar pelos Srs. Didier & Cia., uma resposta suficiente, em minha opinião. Deixo ao julgamento deles o cuidado de confrontar os vossos argumentos e os meus. Os que quiserem, previamente, ter uma ideia sucinta e com pouca despesa, poderão ler a pequena brochura intitulada: O que é o Espiritismo? e que custa somente 60 centavos, bem como a Carta de um católico sobre o Espiritismo, do Sr. Dr. Grand, antigo vice-cônsul de França. Encontrarão ainda algumas reflexões sobre o vosso artigo no número do mês de março da Revista Espírita, que publico.

Todavia, há um ponto que eu não poderia passar em silêncio. É o trecho do vosso artigo onde dizeis que o Espiritismo se baseia no mais grosseiro materialismo. Ponho de lado as expressões ofensivas, e pouco parlamentares, às quais tenho por hábito não prestar atenção, limitando-me a dizer que essa passagem contém um erro, não direi grosseiro, pois o termo seria incivil, mas capital, que me importa realçar para a instrução de vossos leitores. Com efeito, o Espiritismo tem por base essencial, e sem a qual não teria nenhuma razão de ser, a existência de Deus, da alma, sua imortalidade, as penas e as recompensas futuras. Ora, esses pontos são a mais absoluta negação do materialismo, que não admite nenhum deles. A Doutrina Espírita não se limita a afirmá-los; não os admite a priori: é a sua demonstração patente. Eis por que já reconduziu um tão grande número de incrédulos, que já haviam abjurado qualquer sentimento religioso.

Ela pode não ser espiritual, mas com toda certeza é essencialmente espiritualista, isto é, contrária ao materialismo, porquanto não se conceberia uma doutrina da alma imortal, fundada sobre a não-existência da alma. O que conduz tanta gente à incredulidade absoluta é a maneira pela qual são apresentados a alma e o seu futuro. Vejo diariamente as pessoas dizerem: “Se desde a infância me tivessem ensinado essas coisas, como o fazeis, eu jamais teria sido incrédulo, porque agora compreendo o que antes não compreendia”. Assim, diariamente tenho a prova de que basta expor esta doutrina para conquistar-lhe numerosos partidários.

Aceitai, etc.


6. MAIS UMA PALAVRA SOBRE O SR. DESCHANEL.

(DO JOURNAL DES DÉBATS.)
[Revista de abril de 1861.]

No número anterior da Revista Espírita os leitores puderam ver, ao lado de nossas reflexões sobre o artigo do Sr. Deschanel, a carta pessoal que lhe enviamos. Muito curta essa carta, cuja inserção lhe pedíamos, tinha o objetivo de retificar um grave erro que ele havia cometido em sua apreciação. Apresentar a Doutrina Espírita como baseada no mais grosseiro materialismo era desnaturar completamente o seu espírito, pois, ao contrário, ela tende a destruir as ideias materialistas. Havia em seu artigo muitos outros erros que poderíamos ter apontado, mas aquele era por demais importante para ficar sem resposta; tinha uma gravidade real porque tendia a lançar um verdadeiro descrédito sobre numerosos adeptos do Espiritismo. O Sr. Deschanel julgou não dever aquiescer ao nosso pedido e eis a resposta que nos dirigiu:


“Senhor,

“Recebi a carta que me fizestes a honra de escrever, em data de 25 de fevereiro. O Sr. Didier, vosso editor, encarregou-se de vos explicar que tinha sido a seu reiterado pedido que eu havia consentido em noticiar, no Débats, o vosso O Livro dos Espíritos, desde que o pudesse criticar como bem entendesse; era a nossa combinação. Agradeço por terdes compreendido que, nestas circunstâncias, usar do vosso direito de contestação teria sido estritamente legal, mas, certamente, menos delicado do que a abstenção com que havíeis concordado, conforme o Sr. Didier me informou esta manhã.

“Quereis aceitar, etc.

E. Deschanel.”


Esta carta peca pela falta de exatidão em diversos pontos. É verdade que o Sr. Didier enviou ao Sr. Deschanel um exemplar de O Livro dos Espíritos, como é costume de editor para jornalista; mas o que não é exato é que o Sr. Didider tivesse se comprometido a não nos dar explicação sobre suas supostas instâncias reiteradas para que lhe fizesse uma apreciação. Se o Sr. Deschanel julgou dever consagrar-lhe vinte e quatro colunas de zombarias, ele nos permitirá supor que não tenha sido por condescendência nem por deferência para com o Sr. Didier. Aliás, já dissemos que não foi por isto que nos lamentamos: a crítica era um direito seu; e, desde que não partilha do nosso modo de ver, estava livre para apreciar a obra segundo o seu ponto de vista, como acontece diariamente. Por alguns, uma coisa é levada às nuvens, por outros, depreciada, mas nem um nem outro desses julgamentos é inapelável. O único juiz em última instância é o público, sobretudo o público futuro, que é alheio às paixões e às intrigas do momento. Os elogios obsequiosos das camarilhas não o impedem de enterrar para sempre o que é realmente mau, e o que é realmente bom sobrevive, a despeito das diatribes da inveja e do ciúme.


“Desta verdade duas fábulas darão testemunho, Tanto a coisa sobeja em provas,” teria dito La Fontaine. Não citaremos duas fábulas, mas dois fatos. Quando de seu aparecimento, Fedra, de Racine, teve contra si a corte e a população da cidade, e foi ridicularizada. O autor sofreu tantos desgostos que aos 38 anos renunciou a escrever para o teatro. A Fedra de Pradon, ao contrário, foi exaltada além da medida. Qual é hoje a sorte dessas duas obras? Um outro livro mais modesto, Paul et Virginien foi declarado natimorto pelo ilustre Buffon, que o achava enfadonho e insípido; entretanto, sabe-se que jamais um livro foi tão popular. Com esses dois exemplos, nosso objetivo é simplesmente provar que a opinião de um crítico, seja qual for o seu mérito, não passa de uma opinião pessoal, nem sempre ratificada pela posteridade. Mas voltemos de Buffon ao Sr. Deschanel, sem comparação, porque Buffon enganou-se redondamente, enquanto o Sr. Deschanel crê, sem dúvida, que dele não dirão a mesma coisa.

Em sua carta o Sr. Deschanel reconhece que o nosso direito de contestação teria sido estritamente legal, mas acha mais delicado de nossa parte não o exercer. Ainda se engana completamente quando diz que concordamos com uma abstenção, o que daria a entender que nos rendemos a uma solicitação, e mesmo que o Sr. Didier teria sido encarregado de o informar. Ora, nada é menos exato. Não julgamos dever exigir a inserção de uma exposição contraditória. Ele é livre para achar nossa doutrina má, detestável, absurda, de o gritar de cima dos telhados, mas esperávamos de sua lealdade a publicação de nossa carta para retificar uma alegação falsa, e que podia atingir a nossa reputação, no que tange a nos acusar de professar e propagar as próprias doutrinas que combatemos, como subversivas da ordem social e da moral pública. Não lhe pedíamos uma retração, à qual seu amor-próprio se teria recusado, mas apenas que inserisse o nosso protesto; por certo não estaríamos abusando do direito de resposta, considerando-se que em troca de vinte e quatro colunas, não lhe pedíamos mais que trinta a quarenta linhas. Nossos leitores saberão apreciar sua recusa; se ele quis ver delicadeza em nosso procedimento, não poderíamos julgar o seu da mesma maneira.

Quando o Sr. abade Chesnel publicou no jornal Univers, em 1858, seu artigo sobre o Espiritismo, deu da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas uma ideia igualmente falsa, ao apresentá-la como uma seita religiosa com seu culto e seus sacerdotes. Tal alegação desnaturava completamente seu objetivo e suas tendências e podia confundir a opinião pública. Era tanto mais errônea que o regulamento da Sociedade lhe propõe ocupar-se de matérias religiosas. Com efeito, não se conceberia uma Sociedade religiosa que não pudesse ocupar-se de religião. Protestamos contra esta asserção, não por algumas linhas, mas por um artigo inteiro e longamente motivado que, a nosso simples pedido, o Univers julgou dever publicar. Lamentamos que, em idêntica circunstância, o Sr. Deschanel, do Journal des Débats, se creia menos moralmente obrigado de restabelecer a verdade do que os senhores do Univers. Se não fosse uma questão de direito, seria sempre uma questão de lealdade. Reservar-se o direito de ataque sem admitir a defesa é um meio fácil de fazer crer aos seus leitores que ele tem razão.



[1] Univers, maio e julho de 1859; Sr. Oscar Comettant, dezembro de 1859; Gazette de Lyon, outubro de 1860; Sr. Louis Figuier, setembro e dezembro de 1860; Bibliographie catholique, janeiro de 1861.


[2] [v. André Chénier.]


[3] Vide a Revista Espírita, junho de 1859.


[4] [Paulo e Virgínia é um romance escrito em 1787, por Bernardin de Saint-Pierre.]


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