O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

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Revista espírita — Ano III — Setembro de 1860.

(Idioma francês)

DISSERTAÇÕES ESPÍRITAS.

Recebidas ou lidas na Sociedade por diversos médiuns.

Devaneio

[DE UM POETA.]

Vou contar-te uma história do outro mundo, onde me encontro. Imagina um céu azul, um mar calmo e verde, rochedos bizarramente talhados; nenhuma vegetação, a não ser os pálidos liquens agarrados às fendas das pedras. Eis a paisagem. Como simples romancista, não posso comprazer-me em te dar mais detalhes. Para povoar este mar, estes rochedos, só se achava um poeta, sentado, sonhando, refletindo em sua alma, como num espelho, a suave beleza da Natureza, que não falava menos ao coração do que aos olhos. Este poeta, este sonhador, era eu. Onde? Quando se passa a minha história? Que importa!

Assim eu escutava, olhava, comovido e trespassado pelo encanto impenetrável da grande solidão. De repente vi surgir uma mulher, de pé, no penacho do rochedo. Era alta, morena e pálida. Os longos cabelos negros flutuavam sobre o vestido branco. Olhava direto em frente, com estranha firmeza. Eu me havia levantado, extasiado de admiração, porque aquela mulher, florescendo de repente no rochedo, parecia o próprio devaneio, o divino devaneio, que tantas vezes eu havia evocado com singular enlevo. Aproximei-me. Sem se mover, estendeu o braço nu e soberbo para o mar e, como que inspirada, cantou com voz suave e lamentosa. Eu a ouvia, assaltado por uma tristeza mortal, e repetia mentalmente as estrofes que deslizavam de seus lábios, como de uma fonte viva. Então ela se voltou para mim e fui como que envolvido pela sombra de suas alvas vestes.

— Amigo, disse ela, escuta-me. Menos profundo é o mar de ondas inconstantes, menos implacáveis são os rochedos do que o amor, o cruel amor que dilacera um coração de poeta. Não escutes a sua voz, que se apodera de todas as seduções da onda, do ar, do sol, para estreitar, penetrar e queimar sua alma, que treme e deseja sofrer o mal do amor. Assim falava. Eu a ouvia e sentia o coração fundir-se numa divina ebriedade. Desejaria aniquilar-me no hálito puro que emanava de sua boca.

— Não, continuou ela; amigo, não lutes contra o gênio que te domina. Deixa-te levar em suas ardentes asas pelas esferas radiosas. Esquece, esquece a paixão que te fará rastejar, a ti, águia destinada aos píncaros elevados. Escuta as vozes que te chamam aos celestes concertos. Alça o teu voo, ave sublime; o gênio é solitário. Marcado pelo selo divino, não podes tornar-te escravo de uma mulher.

Ela falava; a sombra avançava e o mar, de verde que era, tornara-se negro; o céu se vestia de trevas e os rochedos se perfilavam, sinistros. Mais radiosa ainda, parecia coroar-se de estrelas, que acendiam suas luzes cintilantes, enquanto sua túnica, alva como a espuma que açoitava a praia, desdobrava-se em pregas imensas.

— Não me deixes, disse-lhe eu finalmente. Leva-me em teus braços; deixa que teus negros cabelos sirvam de laço para me reterem cativo; deixa-me viver em tua luz ou morrer à tua sombra.

— Vem, então, retomou ela com voz clara, embora parecesse distante. Vem, já que preferes o devaneio, que entorpece o gênio, ao gênio, que esclarece os homens. Vem; não te deixarei mais; e feridos pelo golpe mortal, seguiremos enlaçados, como o grupo de Dante. Não temas que te abandone, ó meu poeta! O devaneio te consagra para a desgraça e para o desdém dos homens, que só bendirão teus cantos quando não mais se sentirem irritados ante o esplendor de teu gênio.

Então senti que poderoso abraço me levantava do solo. Nada mais vi, a não ser as níveas vestes a me envolverem como uma auréola. E fui arrebatado pelo poder do devaneio, que me separava para sempre dos homens. [v. A Fantasia.]

Alfred de Musset. n



[1] [v. Alfred de Musset.]


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